Face ao que ia acontecendo, o diz-que-diz aumentava. As reuniões entre os senhores dos diversos poderes multiplicavam-se. Os conhecedores da psicologia das multidões manipulavam o povo. A unanimidade política apontava o crime: “se o deixarmos continuar assim, todos acreditarão nele”. Dito e feito, para manterem o seu rame-rame subserviente e a sua posição privilegiada, “decidiram matar Jesus”. E os que já passeavam pelo recinto da festa perguntavam-se curiosos: ‘Que vos parece? Ele não virá à festa?”. 

Sim, Jesus foi à festa. Ele começou a sua vida pública numa festa, nas Bodas de Caná. Também a vai terminar numa festa, a da Páscoa. Mas não é próprio da festa transmitir e cultivar sentimentos de alegria e amizade? Pois é, mas não foi o caso. Costuma apresentar-se três forças como indispensáveis para que o homem sinta defendidas a sua vida e a sua honra. São elas a força da amizade, a força da justiça e a força da compaixão ou piedade. Quando estas virtudes desaparecem do convívio social, nem sequer a santidade é respeitada. E Jesus foi traído por todas elas e mais algumas! Todos preferiram salvaguardar a sua “grandeza”, a sua autoridade, o seu prestígio em reles subserviência ou dominados pelo medo e cobardia.

A AMIZADE EVAPOROU-SE. Jesus Cristo foi traído pela amizade, sim. A amizade provoca a união dos homens e leva a auxiliarem-se mutuamente nos trabalhos da vida. Este sentimento que nos une, a amizade, tem as suas leis, leis que ela não pode abandonar sem se trair a si própria. É próprio da amizade proteger aquele a quem se dedica, defender o amigo, não abandonar, não negar, não vender, não atraiçoar, evitar tudo aquilo que se possa confundir com indiferença. É próprio da amizade ser reconhecida como valor e valor essencial. No entanto, os discípulos foram indiferentes à dor e à preocupação do Amigo. Jesus, perturbado, sentiu necessidade de presença e apoio em momentos tão trágicos da sua vida: “A minha alma está numa tristeza de morte, ficai aqui e vigiai comigo”. O Evangelista Lucas, que era médico e sabia o que era a hematidrose, diz que “o seu suor se tornou como gotas de sangue, que caiam no chão”. Jesus sua sangue e reza… Eles dormem… Judas foi procurar a quem vender e entregar Jesus por uma gorjeta e com um beijo… É a amizade convertida em indiferença e ódio, em brutalidade e ingratidão. Os outros abandonam o Mestre, todos fogem. Jesus vai sozinho para a casa de Anás. Pedro, meio sorrateiro e a curtir o medo à distância, ao aproximar-se mais um pouco, nega o Mestre: “Uma das criadas olhou-o de frente e disse-lhe: ‘tu também estava com Jesus o Nazareno’. Mas ele negou: ‘Não sei nem entendo o que dizes’. A criada, vendo-o de novo, começou a dizer aos presentes: ‘este é um deles’. Mas ele negou segunda vez. Pouco depois, os presentes diziam também a Pedro: ‘Na verdade, tu és deles, pois também és galileu’. Mas ele começou a dizer imprecações e a jurar: ‘Não conheço esse homem de quem falais”. Abandonar, renegar o amigo, é doloroso e triste. Vender, entregar o amigo aos próprios inimigos é a maior das infâmias! Tal como outrora, quantas vezes os amigos de hoje se convertem nos inimigos de amanhã! 

 

A JUSTIÇA PREFERIU BARRABÁS. Se faltou a amizade, esperava-se que a justiça salvaguardasse a vida e a honra de Jesus, a sua inocência. Pode o juiz não ser amigo do réu, mas tem a obrigação de o julgar segundo o direito e as leis vigentes. Mas Jesus, se traído pela amizade dos seus, foi também traído pela própria justiça. As irregularidades praticadas contra Jesus no Sinédrio são mais que muitas. Há irregularidade no júri constituído, todos são suspeitos, pois eram inimigos de Cristo, fariseus fanáticos, escribas orgulhosos, juízes e acusadores ao mesmo tempo. Há irregularidades no andamento dum processo onde “procuravam um testemunho contra Jesus para lhe dar a morte, mas não o encontravam”. Não há ninguém que o defenda, são todos acusadores, todos. Os depoimentos são de falsas testemunhas que nem sequer concordam nas afirmações: “Muitos testemunhavam falsamente contra Ele, mas os seus depoimentos não eram concordes”. Deturpam as palavras de Jesus acerca do templo do seu corpo. O próprio Caifás transforma-se em acusador, mente, afirma que Jesus “blasfemou” ao dizer-se o Messias, o Filho de Deus. No Tribunal de Herodes, é tratado como um louco e objeto de troça. No Pretório de Pilatos, aparece igualmente injustiçado. Pilatos impõe-se e faz-se valer com a linguagem deste mundo: “não sabes que tenho poder para te libertar e te crucificar?”. «Não respondes nada? Vê de quantas coisas Te acusam». Mas Jesus nada responde, não vale a pena. Pressionado pelo povo, Pilatos, tenta uma última chance. Valendo-se de uma tradição que havia pela festa da Páscoa, de ele ou o povo ter o direito de escolher a liberdade de algum preso, manda buscar um condenado tido como ladrão e assassino e pergunta ao povo quem quer que lhe solte: Jesus ou Barrabás. O povo, manipulado pelos populistas, prefere Barrabás, Barrabás foi solto. Pilatos, forte com os fracos ali representados em Jesus, é subserviente, tem medo do imperador romano, tem medo das autoridades judaicas, tem medo da multidão, tem medo da sua própria consciência que o massacra a dizer-lhe que Jesus é justo e inocente: “Eu não encontro n’Ele nenhum motivo de condenação”. A própria esposa lhe havia dito: “Não te intrometas no caso desse justo, porque hoje sofri muito em sonhos por causa dele” (Mt 27,19). No entanto, mais importante é assegurar os seus próprios interesses. Jesus é condenado à morte, ridicularizado, flagelado, coroado de espinhos e carregado com a cruz até ao alto do Calvário. Aí, é pregado na cruz e morre. Como alguém afirma e se constata, Jesus nunca se descontrola, nunca recua, nunca exerce resistência, mantém-se sempre sereno e digno, enfrentando o seu destino. Pilatos dá-se conta dessa coerência de Jesus, mas permanece dividido entre um sentimento de justiça e a necessidade de satisfazer a multidão e os seus cabecilhas. A justiça não funcionou.

A COMPAIXÃO TAMBÉM FOI NEGADA. Faltou, pois, a amizade e a justiça a defender a inocência de Jesus. Esperar-se-ia que, ao menos, surgisse a compaixão, a piedade, esse sentimento que leva a ter pena de quem sofre, a respeitar a sua honra e dignidade. O último refúgio da inocência é a compaixão que a inocência sempre é capaz de inspirar. Quem se não comove perante os sofrimentos alheios? E quem se não comove perante os sofrimentos infringidos a um inocente? Com Jesus Cristo não há compaixão. Algumas mulheres choram impotentes, é verdade. Um homem, talvez obrigado, ajuda-o a levar a cruz, sim, também é verdade. Mas são muito poucos aqueles que o seguem até ao Calvário. Os outros não manifestam qualquer gesto de compaixão. Vede a atitude dos criados dos pontífices, no Sinédrio: “alguns começaram a cuspir-lhe, a tapar-lhe o rosto com um véu e a dar-Lhe punhadas, dizendo: ‘advinha’ quem te bateu. E os guardas davam-lhe bofetadas”. Reparai na atitude dos soldados de Roma aquando da flagelação e da coroação de espinhos: “Os soldados entrançaram uma coroa com espinhos e colocaram-na na cabeça de Jesus. Vestiram Jesus com um manto vermelho. Aproximavam-se d’Ele e diziam: “Salve, rei dos judeus!”. E davam-lhe bofetadas. Vede a reação do povo quando Pilatos lhe apresenta Cristo sem saber o que lhe havia de fazer: “Crucifica-o!”. “Crucifica-o!”. Olhai os fariseus, também no Calvário, cheios de ódio, desafiando-o a que descesse da cruz: “Tu que destruías o templo e o reedificavas em três dias, salva-Te a Ti mesmo e desce da cruz”. Também os príncipes dos sacerdotes e os escribas troçavam uns com os outros, dizendo: ‘Salvou os outros e não pode salvar-se a si mesmo! Esse Messias, o rei de Israel, desça agora da cruz, para nós vermos e acreditarmos’. Até os que estavam crucificados com Ele o injuriavam”. Tendo perdido “toda a aparência de um ser humano”, ali está “sem distinção nem beleza para atrair o nosso olhar, nem aspeto agradável que possa cativar-nos. Desprezado e repelido pelos homens, homem de dores, acostumado ao sofrimento, era como aquele de quem se desvia o rosto, pessoa desprezível e sem valor para nós”. Até a própria natureza se torna mais triste.

Contemplar a cruz significa assumir a mesma atitude que Jesus assumiu e solidarizar-se com aqueles que são crucificados neste mundo por causas tão mesquinhas ou sem qualquer valor. Aprendamos com Jesus a entregar a vida por amor, numa dinâmica que a morte não pode vencer, porque o amor gera vida nova e faz-nos entrar nos dinamismos da ressurreição. Na cruz vemos todas as dimensões da nossa vida. A cruz não é um símbolo, é uma realidade bem concreta.

Antonino Dias

Portalegre-Castelo Branco, 02-04-2021.

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