Ao longo da História sempre houve promotores de ditaduras e de colonizações culturais e ideológicas. Se não é aqui, é acolá ou mais além. Colonizações, ditaduras, autocracias, teocracias, totalitarismos, autoritarismos, despotismos e todos os quejandos, mesmo que entre si carreguem alguma diferença, venha o diabo e escolha, como soe dizer-se. A quem lhes resiste, impõe-se logo a lei da rolha, do desprezo ou da morte. Os seus promotores logo conseguem uma caterva de seguidores, alguns mais radicais do que eles, para engrossarem as hostes e fazerem valer o seu produto tóxico. Se não vencem pelo bom senso e pela força da razão, acham-se no direito de vencer pela razão da força e seus enfeites. Logo se esmeram em concentrar o poder, em subverter a ordem anterior, em suprimir os espaços de debate e decisão, em influenciar a comunicação social, o poder legislativo e judicial. A par, roubam a liberdade e tentam monopolizar o direito de pensar e decidir, anulam o passado e afunilam o ensino para desconstruir a linguagem, as instituições e a história. Usam a mentira floreada com rebuscado imaginário, afastam os profissionais dos empregos e lugares de prestigio, formatam, desenraízam os jovens das origens culturais e religiosas para, como afirma o Papa Francisco, os ‘homogeneizar’, transformando-os “em sujeitos manipuláveis feitos em série”, causando “uma destruição cultural, que é tão grave como a extinção das espécies animais e vegetais” (cf. CV185-186). Tudo, tudo serve de arma para levar a água ao moinho, mesmo que, para enfeitar todo esse processo, seja preciso borrifá-lo com algumas meias-verdades e alguns mecanismos democráticos. A sofreguidão pelo poder e o bullying ideológico e cultural são, muitas vezes, camaleonicamente apresentados como “saltos civilizacionais” ou como se de direitos humanos se tratasse.

A Sagrada Escritura também nos elucida sobre alguns desses artesãos da História. Sabemos quanto o Povo de Deus, e outros povos, ontem e hoje, sofreram e sofrem pelos desmandos colonizadores e totalitários de alguns dos seus líderes! Não só por ambição do poder ou por causas ideológicas e políticas, também por questões religiosas. Com uma diferença: enquanto, por causas ideológicas ou políticas, alguém, para defender a pele, possa, porventura, fraquejar e dizer que não ao que é sim, ou sim ao que é não, em questões religiosas não é bem assim. Com a fé em Deus, se é fé verdadeira e não meros sentimentalismos religiosos ou pieguices proselitistas, não se jogam interesses, a consciência da presença e a força de Deus levam a antes quebrar que torcer.

O rei Antíoco Epifânio, por exemplo, quis forçar os judeus a adotar os costumes, a cultura e mesmo a religião dos gregos. Para ser mais fácil, tentou subornar e convencer os mais influentes dos judeus a aderir às suas ordens, prometendo amizade e recompensa. A resposta, porém, foi imediata e firme: “Não! Nós não vamos obedecer às ordens do rei”. E se uma musculada perseguição caiu sobre eles, também aumentou e se organizou a resistência na firme convicção de que é “melhor morrer na batalha do que ficar a olhar a desgraça do nosso povo”. Ou, como mais tarde haveriam de dizer Pedro e os Apóstolos, “é mais importante obedecer a Deus do que aos homens” (cf. At 5, 29).

O tempo de perseguição religiosa, porém, é sempre palco de testemunhas radicais da verdade, é cenário de testemunhos heroicos até ao sacrifício da própria vida. É verdade que há “mártires” de muitas outras causas nobres, justas e necessárias, tornando-se inspiração para outros e aos quais muitos devem a liberdade e o bem estar social nesta vida. No entanto, a palavra “martírio” situa-se mais no contexto religioso, faz parte da sua gramática e significa testemunho, aponta para o supremo bem que é a vida eterna. Neste contexto, se a família dos Macabeus, no que respeita à fé, é digna de registo, o episódio duma família de sete filhos não o é menos. Num só dia, a mãe vê torturar e matar cada um dos filhos, à vez, até que, por fim, também ela é torturada e morta. Se há fanatismo religioso e odiosamente doentio que persegue e mata quem não acredita de igual forma, se há, até, quem, habilidosamente manipulado, se torne pessoa bomba (kamikaze) para maiores estragos, há, sem dúvida, nestes processos, muitas outras razões associadas como, por exemplo, fatores culturais, sociais, políticos, psicológicos… São atitudes que não se podem analisar de ânimo leve ou superficialmente. No entanto, e simplificando, uma coisa é perseguir e matar os outros, ou suicidar-se, usando até, ilegitimamente, o nome de Deus para o fazer, outra coisa é suportar com fortaleza o dom do martírio em fidelidade a Deus que é Amor e nos ama infinitamente. Mais tarde, perante tanta perseguição aos cristãos, Tertuliano haveria de dizer que “o sangue dos mártires é semente de cristãos”. Ainda mais perto de nós, São Óscar Romero, sentindo-se perseguido por fomentar a liberdade, a justiça e a paz entre o seu povo, havia dito: “o martírio é uma graça de Deus que eu acho que não mereço, mas se Deus aceita o sacrifício da minha vida, que o meu sangue seja uma semente de liberdade e o sinal de que a esperança será em breve realidade”. Foi assassinado pelo exército salvadorenho enquanto celebrava a Eucaristia em 24 de março de 1980. Hoje, se muitos cristãos continuam a dar um testemunho sem igual no quotidiano da sua vida familiar, social e laboral, outros continuam a dar o supremo testemunho do martírio em defesa da fé em Cristo Jesus, morto e ressuscitado, ao qual estão unidos pela caridade. Foi o que aconteceu, por exemplo, no Domingo passado, no Sudão do Sul. Quando regressavam a casa depois duma celebração numa paróquia dedicada a Nossa Senhora da Assunção, duas religiosas foram mortas numa emboscada.

Mas voltando àquela mãe, é extraordinária a sua coragem e o seu sentido de responsabilidade na educação e perseverança da fé dos filhos. Até ao último momento, amparada pela esperança que tinha no Senhor, e tanto quanto naquela circunstância o podia fazer, não se cansou de exortar os seus filhos a serem fiéis ao Senhor e a não obedecerem ao rei, a serem dignos dos seus antepassados e a reconhecerem Deus que a tudo deu origem. A atitude dos filhos, porém, se consola a mãe, enerva o rei até ao limite, que, aquando do momento da tortura ao último filho, pede mesmo à mãe que lhe dê conselhos para o demover e lhe salvar a vida. Inclinando-se para o filho, a mãe, ludibriando o rei, falou-lhe na sua própria língua, a qual o rei não entendia: “Eu te peço, meu filho: Contempla o céu e a terra e observa todas as coisas que neles há, reconhece que não foi de coisas existentes que Deus as fez e que também o gênero humano tem a mesma origem. Não temas este verdugo, mas sê digno de teus irmãos e aceita a morte, para que eu te reencontre com eles no dia da misericórdia”. Enquanto ela ainda falava, o menino reafirma corajosamente a sua fé, é torturado e morto. Depois dos filhos, foi a vez da mãe.

Em tempos, o Papa Francisco, referindo-se a esta tirânica colonização cultural e ideológica do rei Antíoco, destacava a atitude da mãe. A mãe falava “na língua dos pais”: falava em dialeto, e, por isso, o rei não entendia, o intérprete não compreendia». Hoje “estamos diante de muitas colonizações que querem destruir tudo e começar de novo». Apresentam novos «valores» e dizem que «a história começa aqui», o resto «passou». No entanto, “não existe colonização cultural alguma que possa vencer o dialeto», o dialeto “tem raízes históricas”, a memória e o dialeto defendem-nos sempre.

A fé também se transmite em dialeto, afirmou Francisco: “A fé verdadeira aprende-se dos lábios da mãe, o dialeto que só a criança pode conhecer». “Este é um exemplo do modo como as mães, as mulheres, são capazes de defender um povo, a história de um povo, os filhos: transmitir a fé» (cf. L’OR7.12.17).

Quão importante é a transmissão da fé em família, pela palavra e pelo testemunho, pela alegria com que se vive e pela forma de a traduzir em atitudes de vida!

Antonino Dias

Portalegre-Castelo Branco, 20-08-2021.

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