Portalegre-Castelo Branco, 22-03-2019

Escrevo?… Não escrevo?… Vou escrever, mesmo que me doa. Embora nos cause mossa ouvir e ler as notícias sobre o abuso de menores, penso que os meios de comunicação social prestaram um grande e valioso serviço à Igreja. Tendo feito soar os alarmes, levaram a que a Igreja se acertasse, e, mais rápida e firmemente, procurasse converter “os erros cometidos em oportunidades para erradicar este flagelo não só do corpo da Igreja, mas também do seio da sociedade”. Embora um só caso fosse já condenável e motivo de alerta para ser denunciado e levar o autor à justiça, de facto, ninguém imaginava a grandeza desta calamidade e muito menos que envolvesse figuras de visibilidade mundial. Também fiquei surpreendido, e, com todos os cristãos, também sinto constrangimento por isso e sofro com as vítimas que sofreram e sofrem, mas continuo a amar esta Igreja que saiu do lado de Cristo na Cruz e foi constituída como sinal e instrumento universal de salvação. A Igreja sangra e chora, é verdade, é Mãe. Deseja que todos os seus filhos se sintam irmãos e se respeitem, prestando a maior atenção aos mais pequeninos e frágeis. A infidelidade escandalosa de alguns aliada à tendência que outros têm de generalizar, leva à tentação de perder a sua reputação, também é verdade, como verdade será, possivelmente, que haja quem, mesmo sendo membro da Igreja, se regozije por a ver humilhada e a sofrer. Aqueles que a amam verdadeiramente e, apesar das fraquezas, lhe procuram ser fiéis, sofrem e sentem-se injustiçados como injustiçados e sofredores se sentem as vítimas. No entanto, permanecem unidos na luta pela sua constante purificação, sem excluir, como é evidente, a reparação e expiação por parte daqueles que geraram vítimas e escândalos, pensando eu que eles, estando com toda a certeza a sentir uma humilhação sem igual, também sofrem e chorarão amargamente como Pedro, saberão avaliar a grandeza do mal feito e o sofrimento causado que, mesmo que seja perdoado, jamais será totalmente reparado. Rezemos pelas vítimas que sofrem e lutam por respeito e justiça. Não deixemos de rezar por quem as provocou, feriu e humilhou para que, expiando, se convertam sem deixar de confiar na misericórdia infinita de Deus. Rezemos uns pelos outros para que não sejamos motivo de escândalo para ninguém e muito menos profissionais da religião e a viver de aparências. Se a Igreja é humana, constituída por homens frágeis e pecadores a quem Cristo, apesar de tudo, confiou a Sua própria missão, não podemos esquecer que ela também é divina e santa em virtude da sua origem e missão, residindo aí o seu mistério que só a fé alimentada pela Palavra, pela graça e pela oração pode acolher, sentir e viver. Prefigurada desde as origens, gradual e maravilhosamente preparada ao longo da história, instituída por Cristo, publicamente manifestada no Pentecostes, ela foi por Cristo, e em Seu nome, enviada a todas as nações para de todas fazer discípulos, expondo e atualizando o mistério do amor de Deus pelos homens. Até que seja consumada no fim dos tempos (cf. LG2), ela avança no cumprimento da tarefa que lhe foi confiada, com humildade e confiança. Com êxitos e fracassos, com mais ou menos fidelidade, santa e pecadora, ela sente-se a caminho, sempre em renovação e a refontalizar a sua missão com a garantia da presença de Cristo que a enriquece com os dons do Seu Espírito que a dinamiza e purifica quando ela se desvia da rota e se esquece do para quê da sua existência. Se assim não fosse, se fosse só humana, há muito teria acabado. Dois mil anos de história duma instituição, com gente de todas as raças e cores, culturas e saberes, ideologias e ambições, línguas e feitios, e das mais variadas regiões do planeta, da maneira que todos somos tão frágeis e mesquinhos, há muito que ela teria acabado. Se ela atravessa hoje momentos de dor, revigorar-se-á no seu verdadeiro caminho, nessa fidelidade à aliança selada com o Sangue de Cristo. A sua lei é o mandamento novo, o mandamento do Amor. É seu dever amar e ensinar a amar como o próprio Cristo nos amou e ser sal da terra e luz do mundo constituindo para todos “o mais forte gérmen de unidade, esperança e salvação”. 
Infelizmente, o abuso de menores é uma chaga social transversal a todas as sociedades, em todas as culturas, por todo o mundo. Os estudos feitos revelam que estes abusos são sobretudo cometidos pelos pais, os parentes, os maridos de esposas-meninas, os treinadores e os educadores. O presumível responsável pelo agravo sofrido por um menor é, em 73,7% dos casos, um progenitor: a mãe em 44,2%, o pai em 29,5%, um parente em 3,3%, um amigo em 3,2%, um conhecido em 3%, um professor em 2,5%, um estranho adulto em 2,2%. Mas é evidente que a universalidade de tal desgraça não diminui “a sua monstruosidade dentro da Igreja”, como afirmou o Papa Francisco, em 24 de fevereiro passado, no seu discurso de encerramento do Encontro sobre a proteção de menores na Igreja. Antes pelo contrário: “A desumanidade do fenómeno, a nível mundial, torna-se ainda mais grave e escandalosa na Igreja, porque está em contraste com a sua autoridade moral e a sua credibilidade ética”. E diz o Papa, “Quero repetir aqui claramente: ainda que na Igreja se constatasse um único caso de abuso – o que em si já constitui uma monstruosidade –, tratar-se-á dele com a máxima seriedade”, pois, “na ira justificada das pessoas, a Igreja vê o reflexo da ira de Deus, traído e esbofeteado por estes consagrados desonestos. O eco do grito silencioso dos menores, que, em vez de encontrar neles paternidade e guias espirituais, acharam algozes, fará abalar os corações anestesiados pela hipocrisia e o poder. Temos o dever de ouvir atentamente este sufocado grito silencioso”. E acrescenta: “Com humildade e coragem, devemos reconhecer que estamos perante o mistério do mal, que se encarniça contra os mais frágeis, porque são imagem de Jesus. É por isso que atualmente cresceu na Igreja a consciência do dever que tem de procurar não só conter os gravíssimos abusos com medidas disciplinares e processos civis e canónicos, mas também enfrentar decididamente o fenómeno dentro e fora da Igreja”. Esta calamidade atinge o centro da missão da Igreja que é “anunciar o Evangelho aos pequeninos e protegê-los dos lobos vorazes”. Tais ofensas “são sempre a consequência do abuso de poder, a exploração duma posição de inferioridade do indefeso abusado que permite a manipulação da sua consciência e da sua fragilidade psicológica e física. O abuso de poder está presente também nas outras formas de abusos de que são vítimas quase oitenta e cinco milhões de crianças, no esquecimento geral: as crianças-soldado, os menores prostituídos, as crianças desnutridas, as crianças raptadas e frequentemente vítimas do monstruoso comércio de órgãos humanos, ou então transformadas em escravos, as crianças vítimas das guerras, as crianças refugiadas, as crianças abortadas, etc.” E mais acentua o Papa: “assim como devemos tomar todas as medidas práticas que o bom senso, as ciências e a sociedade nos oferecem, assim também não devemos perder de vista esta realidade e tomar as medidas espirituais que o próprio Senhor nos ensina: humilhação, acusação de nós mesmos, oração, penitência. É o único modo de vencer o espírito do mal. Foi assim que Jesus o venceu”. E faz um apelo: “Faço um sentido apelo à luta total contra os abusos de menores, tanto no campo sexual como noutros campos, por parte de todas as autoridades e dos indivíduos, porque se trata de crimes abomináveis que devem ser cancelados da face da terra: pedem isto mesmo as muitas vítimas escondidas nas famílias e em vários setores das nossas sociedades”.
As estatísticas oferecidas pela Oms, Unicef, Interpol, Europol e outras instâncias nacionais e internacionais, pecam por defeito, muitos casos não são denunciados, sobretudo os cometidos no seio das famílias. Calcula-se que sejam de 15 a 20% as vítimas de pedofilia na nossa sociedade. A nível global, em 2017, a Oms estimou num milhar de milhão os menores com idade entre 2 e 17 anos que sofreram violências ou negligências físicas, emotivas ou sexuais. Segundo algumas estimativas Unicef de 2014, estes abusos envolveriam mais de 120 milhões de meninas. Em 2017, a mesma organização Onu referiu que, em 38 países do mundo de baixo e médio rédito per capita, quase 17 milhões de mulheres adultas admitiram ter tido uma relação sexual forçada durante a infância. Na Europa, em 2013, a Oms estimou mais de 18 milhões de abusos. Segundo a Unicef, em 2017, em 28 países europeus, cerca de 2,5 milhões de mulheres jovens referiram ter sofrido abusos sexuais, antes dos 15 anos. O Relatório da Interpol sobre a exploração sexual de menores, em 2017, identifica 14.289 vítimas em 54 países europeus. Na Índia, na década 2001-2011, o Centro Asiático de Direitos Humanos registou um total de 48.338 casos de estupros de menores, com um aumento de 336%. Segundo um estudo à escala nacional na África do Sul, 784.967 jovens entre 15 e 17 anos já sofreram abusos sexuais, sendo as vítimas predominantemente do sexo masculino. Na Austrália, segundo os dados divulgados em fevereiro de 2018 e relativos aos anos 2015-2017, um milhão e meio de mulheres referiu ter sofrido abusos físicos e/ou sexuais antes dos 15 anos, e 992.000 homens referiram ter sofrido este abuso quando eram menores. Sabe-se que a difusão da pornografia através da internet contribui para aumentar estes abusos, pois, segundo os dados de 2017, de 7 em 7 minutos uma página da web envia imagens de crianças abusadas sexualmente. Os dados de 2017 da Organização Mundial de Turismo, dizem-nos que três milhões de pessoas no mundo viagem para ter relações sexuais com um menor. As mulheres que viajam para países em vias de desenvolvimento à procura de sexo pago com menores, representam, no total, 10% dos turistas sexuais no mundo. (Aconselho a ler o discurso do Papa Francisco, em 24 de fevereiro, no final do Encontro com os Presidentes das Conferências Episcopais, de onde tirei alguns destes dados).

Antonino Dias

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