Quem canta seu mal espanta, diz-se! Não raro, porém, é suplício para quem ouve, ou para quem é convidado a associar-se. Há quem ame o feio e bonito lhe pareça. O conceito de beleza é muito relativo. Quando se gosta de alguma coisa ou de alguém, até algo que tenha de feioso se acha giro e bonito. É por isso que o povo diz que o amor é cego, até leva a amar o que está a anos-luz dos padrões de beleza em voga. Quando, porém, por dá-cá-aquela-palha, se deixa de gostar dessa coisa ou desse alguém, o mesmo aspeto feioso que se achava giro e bonito serve agora de arremesso, como argumento para repudiar e detestar. A pessoa humana é mesmo complicada, é difícil de ler e decifrar!

Mas esta conversa vem a propósito de quê?, perguntará. E eu respondo: não se enerve, tenha calma. Isto vem a propósito de Santa Cecília, uma mártir romana que vamos celebrar a 22 de novembro. É padroeira dos músicos e cantores cristãos mas também protege os outros. Desde há muitos séculos que a sua iconografia se apresenta enriquecida com elementos musicais. Isso leva-nos a crer que ela cantaria como um rouxinol e manusearia os instrumentos da época com grande mestria.

O Papa Francisco acaba de escrever à Igreja uma carta a falar sobre a formação litúrgica do Povo de Deus. Ora, o canto e a música, intimamente unidos à ação litúrgica, desempenham na liturgia uma função nobre. São parte necessária e integrante da liturgia. Não são um acessório ou um mero embelezamento. São liturgia, devem ter unção, beleza e arte. Assim, ajudam a louvar a Deus, a fazer ecoar no fundo do coração a Palavra de Deus. Favorecem, afirma Bento XVI, a redescoberta de Deus através duma “renovada abordagem da mensagem cristã e dos mistérios da fé”. Por sua vez, a Constituição sobre a Sagrada Liturgia, diz que a sua beleza coopera para nutrir e expressar a fé, contribui para louvar dignamente o Senhor e para a santificação dos fiéis, seguindo três importantes critérios: “a beleza expressiva da oração, a participação unânime da assembleia nos momentos previstos e o caráter solene da celebração” (cf. SC112).

Todos sabemos quanta dificuldade têm as comunidades paroquiais nesta dimensão importante da Liturgia. Porquê? Os dons recebidos, embora possam e devam ser reconhecidos e agradecidos, não são para o próprio se orgulhar deles. São dados para colocar ao serviço dos outros. No entanto, nem todos os cristãos com qualidades musicais se mostram disponíveis para os pôr a render ao serviço das comunidades neste âmbito específico. A par, as comunidades, reconhecendo a importância da música e do canto na liturgia, na impossibilidade de alternativa, aceitam e agradecem a boa vontade de quem se disponibiliza. A maioria desta boa gente, gente de boa vontade, presta um grande e louvável serviço às comunidades, persistentemente. No entanto, aqui ou além, quando há rotina e desmazelo, quando falta qualidade e ligação à liturgia, este serviço esvazia a sua missão, e cansa. A assembleia não consegue elevar-se com a beleza da ação litúrgica. Se quem canta reza duas vezes, nesta situação dificilmente o conseguirá. Este ‘ministério’ reclama sensibilidade, formação litúrgica e a interiorização de que é um serviço que se presta à assembleia cujas vozes se devem ouvir. A participação dos fiéis, também no canto litúrgico, muito depende do estilo, do modo de ser e de estar de quem se associa para prestar este serviço, em Igreja.

Numa peregrinação a Roma das “Scholae Cantorum” de todas as partes de Itália, promovida pela Associação Santa Cecília, Bento XVI lembrou “como a música sacra pode favorecer a fé e cooperar para a nova evangelização”. Recordou como tanto contribuiu para a conversão de Santo Agostinho “a escuta do canto dos salmos e dos hinos, nas liturgias presididas por Santo Ambrósio”. De facto, logo que foi ordenado Bispo de Milão, Santo Ambrósio, pessoa musicalmente dotada, “pôs este dom ao serviço da fé e da evangelização”. E a experiência dos hinos ambrosianos foi tão forte, “que Agostinho os levou impressos na memória e citou-os com frequência nas suas obras; aliás, escreveu uma obra precisamente sobre a música, o “De Musica”.

A fé nasce da escuta da Palavra de Deus. Santo Agostinho, no seu livro das Confissões, testemunha-nos como a música, sobretudo o canto, podem conferir uma maior força comunicativa à Palavra. Escreveu ele: “Como eu chorei ao ouvir os vossos hinos, os vossos cânticos as suaves harmonias que ecoavam pela vossa igreja! Que emoção me causavam! Passavam pelos meus ouvidos, revelando a verdade ao meu coração. Um grande impulso de piedade me elevava, e as lágrimas rolavam-me pela face; mas faziam-me bem”. E noutro passo do livro, refere: “Quando voltam à mente as lágrimas que os cânticos da Igreja me fizeram derramar nos primórdios da minha fé reconquistada, e a comoção que ainda hoje suscita em mim não o cântico, mas as palavras cantadas, se são cantadas com voz límpida e com a modulação mais conveniente, reconheço de novo a grande utilidade desta prática».

Paul Claudel, poeta francês, refere Bento XVI, converteu-se ao ouvir o canto do Magnificat durante as Vésperas de Natal na Catedral de Notre-Dame de Paris. Eis o seu testemunho: «Naquele momento deu-se o acontecimento que domina toda a minha vida. Num instante o meu coração comoveu-se e eu acreditei. Acreditei com uma força de adesão tão grande, com um tal enlevamento de todo o meu ser, com uma convicção tão poderosa, numa certeza que não deixava lugar a espécie alguma de dúvida e que, a partir daquele momento, raciocínio algum ou circunstância da minha vida movimentada puderam abalar a minha fé nem afetá-la». E quantas pessoas mais teriam sido tocadas no coração e atraídos para Deus através da Liturgia pela beleza do canto e da música sacra!

A boa música encanta, seduz, enriquece, alegra, eleva o coração e a alma, é a linguagem do belo e do sagrado, ajuda a fazer da vida e do mundo a sinfonia do amor.

Oh, porque as não tenho, como eu aprecio quem tem unhas para tocar viola!…

Antonino Dias

Portalegre-Castelo Branco, 18-11-2022.

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