Sim, há mesmo coisas levadas da breca! Não naquele sentido de breca significar furor, ira, diabruras, mas no de exprimir coisas espantosas, incríveis, extraordinárias. E espantoso é, por exemplo, haver dias internacionais para muita coisa, fazendo com que muita coisa tenha, em cada dia, todos os dias, o seu dia internacional. Já são 218 esses dias, além dos anos temáticos, das décadas especiais, dos dias europeus e alguns dias mundiais da Igreja. Entendemos tais preocupações e a necessidade de agir, mas também sabemos que, se o hábito de os proclamar pode viciar os seus autores, a tanta abundância também pode desmotivar aqueles que se pretendem sensibilizar. Esta afirmação, porém, pode parece uma tontaria, mas o leitor fará o favor de a rejeitar ou contestar. O Dia Internacional da Democracia, deste ano, já bate à porta, e, como sabemos, a democracia preza a liberdade de expressão. Quando, porventura, essa liberdade de expressão leva a dizer o que se pensa sem pensar o que se diz, tanto pode sair um disparate mais que asinino, como uma ideia fulgurante ao jeito de talento parlamentar, como um impropério de fazer ferver a indignação ao ponto de a tampa saltar para sovar tal vileza: ihihihihih…

Desde 2007, e por solene autorização das Nações Unidas, lavrada e emitida em Resolução, a Democracia, mesmo que tenha pressa e faça bater a aldraba na porta, só poderá entrar a 15 de setembro, o seu dia. Não sei se é por isso, mas acho que essa esbelta senhora, a Democracia, anda um pouco desorientada e abatida, cabisbaixa, talvez doente. Como se não bastasse, os especialistas em tais maleitas manifestam dificuldade em acertar na moche, não apreciam os sintomas em evidência, mostram cansaço e alheamento. Possivelmente, alguns deles também estarão adoentados, coitados, talvez com síndrome de grave doença antidemocrática, tendo dificuldade em encontrar alguém que tenha a coragem de lhes fazer um rigoroso diagnóstico e de lho revelar… Assim, a tão desejada Democracia, nas suas moléstias, ter-se-á de contentar com umas mezinhas caseiras bem mal amanhadas, possivelmente ao gosto de curiosos amadores ou de tarefeiros com pressa, incapazes de lhe garantirem esperança no resultado. Paciência, são sortes!

Como o leitor constata, ainda sobra uma mão cheia de dias para, se a imaginação funcionar, a ONU conseguir proclamar mais uns tantos dias de âmbito internacional. Só não sei é se haverá coisa assim tão mísera que só mereça um dia em cada ano! Já no longínquo século terceiro antes de Cristo, mesmo insinuando ser um gazeteiro, pois afirmou que ‘o muito estudo cansa o corpo’ (Ecl 12,12), o sábio Coelet do Eclesiastes, ou atualizou o que já corria de boca em boca, ou arrancou mesmo do seu toutiço uma conclusão que, face às perguntas deste nosso tempo, não está assim tão fora de prazo como os iogurtes envelhecidos. Ele sabia que no tempo há tempo para tudo. Mas, olhando à sua volta, escutando e mirando o que se passava, entendia que o tido como certo e mais que comprovado era posto em causa, e o que fazia mover as pessoas e a sociedade em geral era uma fantasia, uma corrida desenfreada atrás do vento, uma maluqueira maluca a fazer perder o sentido da vida e a constatar que, apesar de tanto canseira, “geração vai, geração vem, e a terra permanece sempre igual’ (Id.1,4). Entre nós, hoje, também não falta quem rabuje pelo facto de, na sua perceção (como agora se diz), aquilo que se tinha como certo – e bom! -, ser abandonado sem nada que o substitua ou supere. Ao mesmo tempo, dentro da sua mesma perceção, ora baloiçam entre o usufruir à farta do antigo e o dizer mal de quem o construiu, ora gozam à brava o presente mas maldizem-no e esconjuram quem o suporta e conduz, ora anunciam um futuro de maravilhas tão excelentes que até o maravilhoso mundo da Alice ficará a anos-luz de distância. A sua conclusão é excelente e radical, assim o presumo eu já que eles a guardam como um grande segredo: “Nós é que somos e sabemos! Se não formos nós a segurar musculadamente nas rédeas e a presidir aos destinos pátrios, só haverá mais do mesmo: ‘geração vai, geração vem’ e nada de novo acontecerá debaixo do sol, não haverá novidade que se preze, só a derrocada total, até dos escombros!”

Jesus, que revolucionou a história, não veio para destruir, veio para aperfeiçoar. Não desprezou o passado, não se manifestou senhor do presente, apontou para um futuro feliz construído por todos, sem exclusões nem peneiras. Nessa perspetiva e nessa esperança, apreciamos a dialética democrática, esse processo de diálogo e debate, onde diferentes ideias, interesses e opiniões se confrontam em busca de algo novo, tanto quanto possível fruto das achegas de todos, para que, quem de direito e de dever, possa agir melhor em favor do bem comum, do bem estar coletivo, do progresso e do desenvolvimento sustentável. Muito ajuda neste processo a interação sadia dos poderes legislativo, judicial, executivo e a fidelidade à Constituição, a qual, neste momento, persente que anda mouro na costa, pois, se assim não fosse, um grupo de Juristas de Coimbra não teria posto a correr uma petição pública que pode ser subscrita por quem se associe à sua defesa.

Como vínhamos a falar, no processo democrático do bem fazer, ninguém pode agir como se tivesse o monopólio do presente, ninguém pode romper com o passado só porque sim, ninguém, nos seus delírios ideológicos ou subestimando a realidade em favor da ideia, deve prometer aquilo que não é capaz de dar. Tal como Jesus fez, a democracia deve respeitar o passado e a tradição, deve respeitar o trabalho daqueles que vieram antes, que se esforçaram por nos oferecer o melhor que puderam e como o entenderam, deve assumir o dever de aperfeiçoar essa herança, tanto quanto necessário e possível, pois nem tudo será de manter, nem tudo tem o mesmo valor, nem tudo, hoje, será conveniente à pessoa e à sociedade, mas tudo pode ser retificado, completado e aperfeiçoado. Ter a pretensão ensoberbada de descartar todos e tudo quanto vem do passado para começar do zero, do nada, como se isso fosse possível, como se antes nada e ninguém tivesse existido, como se o hoje não dependesse do ontem e o amanhã do hoje, como se agora é que se inventou a pólvora, não será boa atitude democrática, não manifesta bom senso, reconhecimento, gratidão, evolução, crescimento. Ora, este Dia Internacional da Democracia tem o propósito de enaltecer, reafirmar, promover e proteger a dita cuja e os seus valores, com a colaboração individual e coletiva, o apoio da comunidade internacional, da sociedade civil e de todos quantos defendem os valores democráticos. Mesmo que muito se tenha trabalhado nessa área, há, por esse mundo além, quem, embora sabendo que o tempo deve servir para nascer, plantar, construir, rir, bailar, incluir, abraçar, amar e ter paz, preferem ofender, arrancar, destruir, dividir, descartar, odiar, fazer guerra, matar…

Coisa levada da breca seria também se, agora que se aproximam as nossas eleições autárquicas e se apela à participação e ao voto como dever e valores democráticos, os políticos se apresentassem com discursos tais que criassem na opinião pública a ideia de que só falam verdade quando dizem mal uns dos outros. O respeito de uns pelos outros edifica, educa, constrói, atrai, gera confiança. A gritaria, a baixeza na linguagem e nos argumentos degrada, deseduca, destrói, afasta.

Antonino Dias

Portalegre-Castelo Branco, 12-09-2025.

 

 

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