Ria-se, ria-se, mas sobretudo sorria. O riso ouve-se, faz barulho, dispõe bem, é saudável. O sorriso é diferente, não se ouve, vê-se, nasce de dentro, não faz barulho, se não for o de escarninho, é fruto do Espírito, é dom. Talvez fazendo rir e sorrir, e porque as datas se aproximam, quero recordar aqueles que, tendo experimentado a perigosidade da vida, já se foram, pilhados pela morte! Uns, duma maneira mais hábil, peregrinaram na direção certa ao encontro da Vida. Outros, seguindo embora a boa direção, é possível que se tenham metido por alguns atalhos, por trilho de cabras ou becos ensarilhados, atrasando-se na chegada à meta, mas lá chegarão. Sobre os que preferiram a direção oposta, não sei falar, muito menos julgar, mas acredito na misericórdia divina. É certo que, neste mundo, os caminhos são muitos e diversos para chegar a metas predefinidas, mas quando se perde a direção, é mesmo o cabo dos trabalhos. José Almada Negreiros escreveu que a direção única “não é assim uma coisa tão recente como toda a gente o pode imaginar à primeira vista. Muitíssimo antes de haver automóveis, carruagens e carroças, muitíssimo antes mesmo de ter sido inventada a própria roda, já havia no mundo a direção única. Ela data já daquele dia memorável em que Deus, depois de ter criado o Mundo, deu a alternativa ao Homem. Mas entre Deus e o Homem há uma diferença dos diabos. Entregou Deus ao Homem o nosso planeta inteirinho, com todas as suas maravilhas, com todo o esplendor de todas as suas múltiplas fortunas, e ao confiar-lhe desta maneira todas as riquezas da terra, disse-lhe: – Toma para ti, tudo isto tem uma direção única. E levou ao máximo a sua lealdade de Deus para com o Homem, avisando-o como bom e verdadeiro amigo, de que havia também direções proibidas e, por conseguinte, que tivesse muito cuidadinho com elas”. Para que o leitor passe uns momentos agradáveis, convido-o a ler, ou a reler, esta Conferência que Almada Negreiros fez em 1932 no Teatro Nacional de Almeida Garrett, hoje D. Maria II. Basta buscá-la na net, rir-se-á sozinho, com proveito.

Proponho que ao recordar os que já partiram, ninguém se embrulhe em cara de funeral, de vinagre ou de Sexta-Feira Santa. Com saudades e a consolação das lágrimas, sim, mas sobretudo com a esperança e a alegria dos Santos, com a alegria da Ressurreição. Para lhes aguçar ainda mais o apetite, passo de novo a palavra a esse artista e “apolítico voluntário” que falou assim àquele auditório mui atento: “Fomos instados pelas mais cavalheirescas pessoas da nossa terra para que trouxéssemos aqui à nossa gente alegria a rodos, coragem aos potes, tanks de felicidade, transatlânticos de entusiasmo, e a nossa resposta foi esta: Alegria sim. Faremos todo o possível. Mas que não confundam a alegria com o riso. O riso é a expressão das caveiras. E a alegria é para os vivos a coisa mais séria da vida! Alegria é saber muito bem por onde se vai, é ter a certeza de que o caminho é o bom, que a direção é a única”.

Há quem tenha o descoco de dizer que esta única direção é insonsa e não a melhor. Há quem diga que lhe falta isto, aquilo e não sei mais o quê, talvez orégãos, coentros, alecrim e beldroegas, talvez… Há quem tenha tanto, ou até tudo, mas esse tudo, ou tanto, só lhe serve para se desviar da rota. Adão e Eva, apesar de terem tudo, também “quiseram mais do que ter tudo”. E “foram-se pelas direções proibidas”. E se tudo se estrangalhou, também se foi “por água abaixo a primeira colaboração que se fazia no mundo”. “Palavra de honra que até parece que eram portugueses!”, diz Negreiros. De facto, desde que o rei D. Dinis, para se defender dos vermes e doutra bicharada, se lembrou de levar consigo, para o túmulo, a espada guerreira, Portugal, apesar dos defensores da lei e da grei, apesar da retórica esbraseada lá pelos Passos Perdidos, Portugal tornou-se um baldas! Mas cuidem-se, acabaram de esgaravatar e de escabichar, descobriram a espada. Se faltava a espada, já não falta tudo, arreados com ela, isto agora vai mudar! Vai mesmo mudar? Bem, Camilo C. Branco diria que, de facto, sabendo o que sabe “a ciência não autoriza isto; mas a ciência não sabe os segredos de Deus”. Os milagres acontecem!

Num III Domingo de Advento, lá para as bandas do Rato, Tolentino Mendonça também dizia que o que exaspera a nossa vida é o sentimento de falta, falta-nos sempre alguma coisa: “se temos o poço, falta-nos a corda; se temos a corda, falta-nos o balde; se temos a corda, o balde e o poço, falta-nos a força de ir até ao fundo da nascente buscar a água que nos dessedente. Falta-nos sempre alguma coisa”. No entanto, se pensarmos bem, não nos falta nada, cada um de nós “tem tudo o que precisa para experimentar hoje, no aqui e no agora, a alegria”. Mais do que das circunstâncias, a verdadeira alegria depende do modo de olhar. Importante é “olharmos para a vida, olharmos para o que somos, olharmos para o que nos rodeia de uma outra forma, com um coração agradecido, com um coração capaz de perceber aquilo que o habita”. A alegria “não é uma coisa externa a nós nem é uma invenção que cada um de nós é capaz de fazer: a alegria, antes de tudo, é um dom, um dom que nós recebemos. É porque o Espírito nos habita que nós somos capazes da alegria. É porque esse dom de Deus é derramado em nós e nos dá uma capacidade que nós não temos! Mas é essa capacidade de Deus em nós e é na medida em que nós reconhecemos o dom de Deus na nossa vida, em que reconhecemos aquilo ou Aquele alguém que já está no meio de nós, que nós somos capazes da alegria”.

Já o profeta Sofonias havia escrito: “O Senhor, teu Deus, está no meio de ti como poderoso salvador! Ele exulta de alegria por tua causa, pelo seu amor te renovará. Ele dança e grita de alegria por tua causa” (3,17). Jesus veio para que a sua alegria estivesse em nós e a nossa alegria fosse completa (cf. Jo 15,9-17).

Vivamos os dias de Todos os Santos e dos Fiéis Defuntos com alegria e gratidão. Agradeçamos o testemunho dos Santos, também dos de ao pé da porta. Rezemos pelos Fiéis Defuntos e verifiquemos se, de facto, o GPS da nossa vida estará a indicar a direção certa. Escolher a direção única pelos caminhos da vida é um desafio constante, até porque, como escreveu Guimarães Rosa no “Grande Sertão: Veredas”, viver é perigoso, pode-se morrer!… Jesus, porém, disse-nos: “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem acredita em Mim, ainda que tenha morrido, viverá; e todo aquele que vive e acredita em Mim não morrerá para sempre” (Jo 11, 26).

Antonino Dias

Portalegre-castelo-Branco, 28-10-2022.

 

 

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