Começámos o tempo litúrgico da Quaresma com o expressivo rito da imposição das cinzas. Como tempo forte no caminho da Igreja em direção à Páscoa do Senhor, somos convidados a vivê-la, não só individualmente, mas também em família e na comunidade cristã, em estilo sinodal. Viver a Quaresma e ajudar a que os outros também a possam viver é uma proposta que todos devemos aceitar e anunciar. São Paulo, numa das leituras de Quarta-Feira de Cinzas, dava-nos o testemunho deste seu dever de a todos exortar a que se reconciliassem com Deus. Ele confessava que, como embaixador de Cristo, não se afastava desta tarefa que recebeu, mas procurava cumpri-la com toda a dedicação. Por isso, exortava a todos a que se abrissem à Graça de Cristo, a que se deixassem converter por Deus, a que não recebessem em vão a graça de Deus (cf. 2 Cor 6, 1). Se outrora foi dirigida aos Coríntios, hoje, essa exortação é-nos dirigida a nós, continua atual. Todos precisamos da graça de Deus que nos converte, ilumina e fortalece. Todos podemos e devemos abrir-nos à ação de Deus em nós. Todos podemos oferecer aos outros o testemunho da nossa fé, a começar na própria casa. Pelo batismo, somos embaixadores de Cristo, somos enviados por Ele, em seu nome. E o apelo do Senhor continua a ecoar amorosamente: ‘Convertei-vos a Mim de todo o coração, com jejuns, lágrimas e lamentações. Rasgai o vosso coração… Convertei-vos ao Senhor, vosso Deus, porque Ele é clemente e compassivo, paciente e misericordioso… Tocai a trombeta, ordenai um jejum, proclamai uma reunião sagrada. Reuni o povo, convocai a assembleia, congregai os anciãos, reuni os jovens e as crianças. Saia o esposo do seu aposento e a esposa do seu tálamo. Entre o vestíbulo e o altar, chorem os sacerdotes, ministros do Senhor'…

Trata-se de uma conversão de coração, não de aparências ou do faz de conta, superficial e transitória. É um percurso espiritual que propõe atitudes de conversão a Deus, reconhecendo a sua santidade, o seu poder, a sua majestade, a sua misericórdia, o seu amor por todos e cada um de nós. O Senhor oferece-nos o seu perdão, convida-nos a que nos voltemos para Ele para que nos dê um coração novo, um coração de carne, atento, justo e sensível.

Conforme refere o Catecismo das Igreja Católica, o apelo de Cristo à conversão “continua a fazer-se ouvir … é uma tarefa ininterrupta para toda a Igreja que tem no seu seio os pecadores e que é ao mesmo tempo santa e necessitada de purificação, prosseguindo constantemente no seu esforço de penitência e de renovação. Este esforço de conversão não é somente obra humana. É o movimento do coração contrito, atraído e movido pela graça a responder ao amor misericordioso de Deus que nos amou primeiro” (n. 1428).

Desde o início, a Quaresma aponta-nos as três obras fundamentais de piedade que já caraterizavam os judeus e estavam previstas na lei mosaica: a esmola, a oração e o jejum. No decorrer do tempo, porém, “estas prescrições tinham sido corroídas pela ferrugem do fundamentalismo exterior, ou até se tinham transformado num sinal de superioridade. Jesus põe em evidência nestas três obras de piedade uma tentação comum. Quando realizamos algo de bom, quase instintivamente surge o desejo de sermos estimados e admirados pelas ações boas, isto é, de ter uma satisfação. E isto, por um lado, leva a um fechamento em nós mesmos, por outro, conduz para fora de nós próprios, porque vivemos projetados para aquilo que os outros pensam de nós e admiram em nós. Ao repropor estas prescrições, o Senhor Jesus não exige um respeito formal por uma lei alheia ao homem, imposta por um legislador severo como um fardo pesado, mas convida a redescobrir estas três obras de piedade vivendo-as de modo mais profundo, não por amor próprio, mas por amor a Deus, como meios no caminho de conversão a Ele. Esmola, oração e jejum: é o percurso da pedagogia divina que nos acompanha, não só na Quaresma, rumo ao encontro com o Senhor Ressuscitado: um percurso que se deve percorrer sem ostentação, na certeza de que o Pai celeste sabe ler e ver também no segredo do nosso coração” (Bento XVI, Cinzas, 9/3/2011).

Na sua Mensagem para esta Quaresma, o Papa Francisco torna presente que Jesus, “tomou consigo Pedro, Tiago e seu irmão João, e levou-os, só a eles, a um alto monte» (Mt 17, 1). Isto é, chamou-os à parte, convidou-os a subir ao monte. Eles, conduzidos por Jesus, confiaram, puseram-se a caminho, “um caminho em subida, que requer esforço, sacrifício e concentração, como uma excursão na montanha”. Aí, eles foram “testemunhas de um acontecimento singular”, “de forma partilhada”, superaram “as suas falta de fé e as suas resistências em o seguir pelo caminho da cruz”. E acrescenta Francisco: “Realmente, neste tempo litúrgico, o Senhor toma-nos consigo e conduz-nos à parte”. Somos convidados a subir “a um alto monte” juntamente com Jesus, para viver com o Povo santo de Deus uma particular experiência de ascese”. Jesus quis que aquela experiência da Transfiguração do Senhor não fosse “vivida solitariamente, mas de forma compartilhada, como é aliás toda a nossa vida de fé. A Jesus, seguimo-Lo juntos; e juntos, como Igreja peregrina no tempo, vivemos o Ano Litúrgico e, nele, a Quaresma, caminhando com aqueles que o Senhor colocou ao nosso lado como companheiros de viagem. À semelhança da subida de Jesus e dos discípulos ao Monte Tabor, podemos dizer que o nosso caminho quaresmal é «sinodal», porque o percorremos juntos pelo mesmo caminho, discípulos do único Mestre. Mais ainda, sabemos que Ele próprio é o Caminho e, por conseguinte, tanto no itinerário litúrgico como no do Sínodo, a Igreja não faz outra coisa senão entrar cada vez mais profunda e plenamente no mistério de Cristo Salvador”.

E como é que mais facilmente isso poderá acontecer? Francisco dá-nos duas indicações. A primeira é a voz do Pai que, aquando da Transfiguração, dizia: “Escutai-O” (Mt 17,5). “A Quaresma é tempo de graça na medida em que nos pusermos à escuta d’Ele, que nos fala. E como nos fala Ele?”. Fala-nos na Palavra de Deus que a Liturgia e a Sagrada Escritura nos oferecem, fala-nos “nos irmãos, sobretudo nos rostos e vicissitudes daqueles que precisam de ajuda”, fala-nos também através da “escuta dos irmãos e irmãs na Igreja”, uma escuta “sempre indispensável no método e estilo duma Igreja sinodal”.

Ao ouvir a voz do Pai, os discípulos caíram por terra, assustados e admirados com o que viam, mas Jesus tocou-lhes dizendo: “Levantai-vos e não tenhais medo”. Erguendo os olhos, os discípulos apenas viram Jesus e mais ninguém” (Mt 17, 6-8). Esta é a segunda indicação: “não se refugiar numa religiosidade feita de acontecimentos extraordinários, de sugestivas experiências, levados pelo medo de encarar a realidade com as suas fadigas diárias, as suas durezas e contradições. A luz que Jesus mostra aos seus discípulos é uma antecipação da glória pascal, e é rumo a esta que se torna necessário caminhar seguindo «apenas Jesus e mais ninguém”.

Antonino Dias

Portalegre-Castelo Branco, 24-02-2023.

 

 

 

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