Desde que o duque da Normandia, descendente dos vikings, à falta de descendentes diretos ao trono, se apoderou da Inglaterra em 1066, os monarcas ingleses passaram a controlar vastos domínios em território francês. Com o rolar dos tempos, as rivalidades foram-se atiçando. Quando a França quis recuperar esses territórios, choveram mosquitos por cordas. Nem a França nem a Inglaterra morriam de amores uma pela outra, o que levou a uma das mais longas e sangrentas guerras da Idade Média. Durou 116 anos, de 1337 a 1453, ficou conhecida pela Guerra dos Cem Anos. A falta de descendentes reais, o querer ou o não querer unificar as coroas, o facto de ser negada às mulheres a sucessão ao trono, os interesses senhoriais e outros nobres quiproquós deram água pela barba a muita gente. Quando alguém se apresentava como solução, se era um sinal de esperança para muitos, outros muitos ficavam pior que baratas tontas. Se os tratados assinados alegravam uma grande parte, outra parte, não menos grande, sentia-se humilhada e ofendida. Com tais ventanias era difícil fechar as portas à guerra. 

E eis que surge Joana d’Arc, qual França renascida das cinzas!, uma garota nascida em Domrémy, região de Borrois, em 6 de janeiro de 1412, a mais nova de cinco irmãos. Foi esta menina, educada numa catequese centrada em Cristo e em Maria, de frequência diária no culto e com prática sacramental, com forte personalidade e determinação, que cortava o cabelo à rapaz e vestia roupas masculinas, que não sabia ler nem escrever, que trabalhava com os seus pais na agricultura, que viu familiares seus serem mortos aquando da destruição da sua aldeia, foi esta menina que se apresentou resolvida a libertar a França. Afirmava que aos 12 anos teve uma revelação divina a dizer-lhe que deveria integrar o exército francês e ajudar o rei na luta contra os ingleses. Esta voz e apelo interior não desapareciam, repetiam-se, voltavam a repetir-se, de novo se repetiam a martelar que “É preciso expulsar os ingleses da França”. Nessa revelação, diz ela, viu, ouviu e identificou, no meio de uma grande luz, o arcanjo São Miguel, Santa Catarina de Alexandria e Santa Margarida de Antioquia. 

Movida por essa voz e com apenas 16 anos, abalou da sua aldeia para ir falar com o rei Carlos VII, a Chinon, estávamos em 1429. Como, para lá chegar, teria de atravessar um território longo e adverso, foi pedir uma escolta à guarnição instalada numa cidade vizinha da sua, em Vaucouleurs. O comandante não foi fácil de assoar, mas acabou por ficar convencido. Fê-la portadora de uma carta de recomendação, cedeu-lhe um cavalo e mandou que seis homens a acompanhassem ao longo da viagem que durou onze dias. O rei, porém, mesmo assim, quis prová-la, não viesse ela com a intenção de o matar. Então, armadilharam a coisa. Diz-se que o rei Carlos vestiu roupas comuns e misturou-se na sala com os outros nobres, enquanto outra pessoa ficou sentada no seu trono. Joana, sem nunca ter visto o rei, entrou, atravessou o salão e, sem qualquer hesitação, foi ter com o verdadeiro rei, reconhecendo-o disfarçado entre os nobres. Curvou-se diante dele e disse-lhe que estava decidida a comandar os seus exércitos até à vitória: “Em nome de Deus, vós sois o rei! Se fizerdes como eu ordenar, os ingleses serão expulsos e todos vos reconhecerão como rei de França”. O rei, e lá os da sua alta comandita, ainda submeteram Joana a um pormenorizado interrogatório sobre quem é que ela era e ao que vinha. Com tantos a quererem tirar nabos da púcara, da púcara nada saía de inquietante, apenas transparência, honestidade, amor a Deus, à Igreja, vontade de ajudar o rei e a França, boa fé. No entanto, o que realmente se teria passado nesse encontro com o rei, ainda hoje se discute. A própria Joana não quis explicar, apenas disse que o rei teria recebido um sinal para que acreditasse nela. 

Com um exército desmoralizado, cansado da guerra, com uma França dividida em dois reinos e ela com a soberania sobre o mais pequeno, constantemente derrotada e humilhada, o rei não olhou para trás. Confiou nesta jovem mulher que lhe pareceu de garra, iluminada, “de pelo na venta”. Se o palco da guerra era para homens de barba rija, neste momento histórico em que só um milagre poderia salvar a França, Joana, porque incorporava essa esperança, obteve o benefício da dúvida. O rei entrega-lhe a espada, tralha de proteção, um estandarte e o comando de um pequeno exército, cerca de cinco mil homens. Ela organizou-o a seu jeito, não para lutar por interesses senhoriais, mas para lutar pela França e pelo seu rei, reforçando a ideia de nação, convencendo os inseguros e desanimados, gerando brio no coração dos franceses. Numa carta que havia ditado para o rei de Inglaterra e seus aliados, ela propunha a paz, mas não teve acolhimento. Então, com o seu exército moralizado, Joana avança para Orleães. Ao chegar, intimou o inimigo a render-se: “Voltai para o vosso país. É Deus que assim o quer! O reino da França não é vosso, é de Carlos! Eu sou uma enviada de Deus, a minha tarefa é expulsar-vos daqui! Deus dar-me-á força necessária para vencer os vossos ataques!”. Com certeza que os soldados ingleses olharam para a cachopa, armada em chefona, como Golias olhou para David! Mas Joana, ciente de que em tempo de guerra não se limpam armas, não esteve com meias medidas, ela tinha uma missão a cumprir. Ao seu exército, que se sentia mais corajoso do que nunca e acatava as suas ordens e liderança como divinas, Joana ordena que atacasse os invasores. O êxito não se fez esperar. Ao fim de três dias, os ingleses deram às de vila-diogo, Orleães ficou livre. O mesmo aconteceu, logo em seguida, com Reims. Eis que se dá o esperado milagre: as palavras de Joana concretizam-se, os ingleses sofrem avultados danos, as vitórias foram evidentes, o rei Carlos VII é reconhecido e coroado como legítimo rei da França, segundo as antigas tradições, na catedral de Reims. E Joana lá estava, presente e feliz. Acompanhada do seu estandarte, assistiu à cerimónia, abraçou o rei recém-coroado e dirigiu-lhe a palavra como rei de França, foi em 17 de julho de 1429. 

Próxima dos soldados com testemunho humano e evangelizador, em maio do ano seguinte, Joana tenta libertar a cidade de Compiègne. A coisa, porém, não correu bem. Joana ficou prisioneira dos seus inimigos. Obscuros interesses de políticos e de religiosos, aliados aos da Universidade de Paris e do Estado, arquitetaram um julgamento político de conveniência, “em matéria de fé”, no tribunal da Inquisição da França inglesa. Ainda apelou ao Papa, tal apelo foi rejeitado pelo tribunal. Sozinha, num julgamento baseado na presunção de culpabilidade, sem advogados de defesa, com testemunhas de acusação à la carte, sem qualquer investigação sobre a sua vida, privada de qualquer apoio humano e espiritual e com claras intenções do tribunal, não havia hipótese de absolvição, era o poder e o orgulho dos grandes perante a humildade dos pequeninos indefesos e da sua missão: «Entrego-me a Deus meu Criador, amo-O com todo o meu coração». Aos juízes ela exprime a sua convicção: “De Jesus Cristo e da Igreja eu penso que são um só, e não há que levantar dificuldades a esse respeito” (cf. CatecismoIC795). Interrogada sobre se tem a certeza de estar na graça de Deus, ela responde: ‘Se não estou, Deus nela me ponha; se estou, Deus nela me guarde” (cf. id. 2005). Aqueles doutores da lei que, com as suas curiosidades mórbidas e farisaicas a torturaram durante meses, apresentaram setenta artigos de acusação, posteriormente reduzidos a doze. Acusaram-na de herege, bruxa, blasfema, mentirosa, prostituta… 

Vestida de branco e após ter recebido a Sagrada Comunhão, em 30 de maio de 1431 foi levada à Praça do Mercado Vermelho, em Rouen, ao local da execução, tendo pedido a um dos sacerdotes que conservasse diante da fogueira a cruz processional. Após terem lido a sentença de condenação, foi queimada viva perante a multidão, contemplando Jesus Crucificado e repetindo várias vezes o nome de Jesus em voz alta (cf. id. 435). As cinzas foram lançadas ao rio Sena para que não se tornassem objeto de veneração pública. Tinha 19 anos de idade, “mais ou menos”, como ela dizia, pois há algumas dúvidas quanto ao dia do seu nascimento. Para os franceses, o tom estava dado, a morte de Joana fez aumentar o seu patriotismo, o imaginário popular quase a transformou em lenda. Incentivados pela sua coragem e martírio, continuaram a lutar pela total libertação da pátria. Napoleão Bonaparte declarou-a como símbolo nacional da França. 

A condenação de Joana, porém, não foi pacífica. O Papa Calisto III mandou examinar o processo da sua condenação. Cerca de 25 anos depois, foi reconhecida a sua nulidade por vício de forma e de conteúdo. Foram ouvidas cerca de 120 testemunhas que a tinham conhecido. Joana foi reabilitada de todas as acusações, foi proclamada a sua inocência e formalmente declarada como mártir da Pátria e da Fé. Foi reconhecida pelas suas virtudes heroicas, provenientes duma missão divina, tornando-se em heroína da nação francesa. Beatificada por Pio X em 1909, foi canonizada por Bento XV em maio de 1920. É Padroeira e figura popular no país e no mundo, é referida várias vezes no Catecismo da Igreja Católica e pelo Papa Francisco aos jovens, influenciou muita gente, incluindo Santa Teresa do Menino Jesus, é personagem central de muitas expressões culturais, artísticas, literárias, cinematográficas… Foi uma mística comprometida no meio dos dramas da Igreja e do mundo do seu tempo.


Antonino Dias

Portalegre-Castelo Branco, 21-08-2020.

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