Há cerca de mil e novecentos anos atrás, mais minuto menos minuto, um cristão anónimo escreveu um texto que é considerado uma “joia da antiguidade cristã”, uma “pérola da apologética”. É um texto atual, que nunca nos cansamos de o ler, sobretudo nestes tempos que são os nossos e em que tantas culturas se cruzam. Foi escrito para esclarecer quem, atento ao que se passava, procurava conhecer melhor a essência do cristianismo, uma ‘religião’ nascente que revolucionava os valores da época, tocava o coração de uns e assanhava o de outros, o daqueles que viviam fechados às surpresas de Deus. Todos os anos, na quarta-feira da V semana da Páscoa, este texto nos aparece na Liturgia das Horas. Penso que já o transcrevi aqui uma vez. Pelo sim ou pelo não, aqui o deixo, até porque a melhor figura de retórica é a repetição, dizem que era Napoleão quem dizia isso. Como, porém, ele não está aqui para lhe perguntar, demos-lhe isso de barato e aproveitemos a dica. Eis o texto:

“Os cristãos não se distinguem dos outros homens nem pela pátria, nem pela língua, nem por um género de vida especial. Efetivamente, eles não têm cidades próprias, não usam uma linguagem peculiar, e a sua vida nada tem de excêntrico. A sua doutrina não procede da imaginação fantasista de espíritos exaltados, nem se apoiam, como outros, em qualquer teoria simplesmente humana.

Vivem em cidades gregas ou bárbaras, segundo as circunstâncias de cada um, e seguem os costumes da terra, quer no modo de vestir, quer nos alimentos que tomam, quer em outros usos; mas a sua maneira de viver é sempre admirável e passa aos olhos de todos por um prodígio.

Cada qual habita a sua pátria, mas vivem todos como de passagem; em tudo participam como os outros cidadãos, mas tudo suportam como se não tivessem pátria. Toda a terra estrangeira é sua pátria e toda a pátria lhes é estrangeira.

Casam-se como toda gente e criam os seus filhos, mas não se desfazem dos recém-gerados. Participam da mesma mesa, mas não do mesmo leito. São de carne, mas não vivem segundo a carne. Habitam na terra, mas a sua cidade é o Céu. Obedecem às leis estabelecidas, mas, pelo seu modo de vida, superam as leis. Amam toda a gente e toda a gente os persegue.

Condenam-nos sem os conhecerem; conduzem-nos à morte, mas o número dos cristãos cresce continuamente. São pobres e enriquecem os outros; tudo lhes falta e tudo lhes sobra. São desprezados, mas no desprezo encontram a sua glória; são caluniados, mas transparece o testemunho da sua justiça. Amaldiçoam-nos e eles abençoam. Sofrem afrontas e pagam com honras. Praticam o bem e são castigados como malfeitores; e, ao serem executados, alegram-se como se lhes dessem a vida.

Os judeus combatem-nos como a estrangeiros, os pagãos movem-lhes perseguições; mas nenhum daqueles que os odeiam sabe dizer a causa do seu ódio.

Numa palavra: os cristãos são no mundo o que a alma é no corpo. A alma encontra-se em todos os membros do corpo; os cristãos estão em todas as cidades do mundo. A alma habita no corpo, mas não provém do corpo; os cristãos habitam no mundo, mas não são do mundo.

A alma invisível é guardada num corpo visível; os cristãos vivem visivelmente no mundo, mas a sua piedade permanece invisível. A carne, sem ser provocada, odeia e combate a alma, só porque lhe impede o gozo dos prazeres; o mundo, sem ter razão para isso, odeia os cristãos precisamente porque se opõem aos seus prazeres.

A alma ama o corpo e os seus membros, mas o corpo odeia a alma; e os cristãos amam aqueles que os odeiam. A alma está encerrada no corpo, mas contém o corpo; os cristãos encontram-se detidos no mundo como num cárcere, mas são eles que contém o mundo. A alma imortal habita numa tenda mortal; os cristãos vivem como peregrinos em moradas corruptíveis, esperando a incorruptibilidade dos céus. A alma aperfeiçoa-se com a mortificação na comida e na bebida; os cristãos, constantemente entregues à morte, multiplicam-se cada vez mais. Tão nobre é o posto que Deus lhes assinalou, que não lhes é possível desertar”.

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Antonino Dias

Portalegre-Castelo Branco, 23-05-2025.

 

 

 

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