O gesto impressionou o mundo, um mundo de olhos esticados para lá! Foi mais uma página da História humana, uma página inesquecível, escrita a letras de ouro! Vestido de branco, sozinho e debruçado sobre si mesmo, como que a carregar aos ombros as tragédias do mundo inteiro, o Papa Francisco subia em direção às portas da Basílica de São Pedro, para, voltado para o imenso largo, quotidianamente palco de milhares e milhares de pessoas, mas agora completamente livre, convidar o mundo crente a rezar, também pelos não crentes. Sem dizer monossílabo que se ouvisse, a tristeza gritava e pulava, incomodativa, do chão deserto e silencioso daquela praça, do caminhar pesado e lento do Santo Padre, do tom sofrido da sua voz, dos parcos gestos que a circunstância lhe impunha naquela praça circundada pela monumental colunata de Bernini a abraçar a cidade e o mundo. As nuvens choramingavam!… Foi um momento que ficará para a História, como para a História ficarão as imagens das cidades freneticamente movimentadas pelas exigências da vida, e, agora, completamente desertas, a causarem medo como se de noite escura, ameaçada por bandidos, se tratasse. Foi um momento extraordinário de oração nestes tempos em que, como referia o Papa, “densas trevas cobriram as nossas praças, ruas e cidades; apoderaram-se das nossas vidas, enchendo tudo dum silêncio ensurdecedor e um vazio desolador, que paralisa tudo à sua passagem: pressente-se no ar, nota-se nos gestos, dizem-no os olhares. Revemo-nos temerosos e perdidos. À semelhança dos discípulos do Evangelho, fomos surpreendidos por uma tempestade inesperada e furibunda. Demo-nos conta de estar no mesmo barco, todos frágeis e desorientados mas ao mesmo tempo importantes e necessários: todos chamados a remar juntos, todos carecidos de mútuo encorajamento. E, neste barco, estamos todos”. A situação sanitária que hoje aflige toda a humanidade “desmascara a nossa vulnerabilidade e deixa a descoberto as falsas e supérfluas seguranças com que construímos os nossos programas, os nossos projetos, os nossos hábitos e prioridades. Mostra-nos como deixamos adormecido e abandonado aquilo que nutre, sustenta e dá força à nossa vida e à nossa comunidade”. Tudo nos faz perceber que “caiu a maquilhagem dos estereótipos com que mascaramos o nosso «eu» sempre preocupado com a própria imagem; e ficou a descoberto, uma vez mais, aquela (abençoada) pertença comum a que não nos podemos subtrair: a pertença como irmãos.” Agimos como se não houvesse limites, “avançamos a toda a velocidade, sentindo-nos em tudo fortes e capazes. Na nossa avidez de lucro, deixamo-nos absorver pelas coisas e transtornar pela pressa”, não escutamos os apelos do Senhor, “não despertamos face a guerras e injustiças planetárias, não ouvimos o grito dos pobres e do nosso planeta gravemente enfermo. Avançamos, destemidos, pensando que continuaríamos sempre saudáveis num mundo doente”.

Recordando que, neste tempo em que fazemos memória da Paixão, Morte e Ressurreição do Senhor, ressoa em todos nós o apelo urgente à conversão feito por Jesus, Francisco pede-nos que reajustemos a rota da vida, que aproveitemos “este tempo de prova como um tempo de decisão (…) o tempo de decidir o que conta e o que passa, de separar o que é necessário daquilo que não o é”. 
De facto, a celebração do Tríduo Pascal convida-nos ao silêncio. Um silêncio fecundo, um silêncio que nos faz encontrar connosco mesmos e com Deus, adorando-O em espírito e verdade. Há dois mil anos, Jesus, o Filho de Deus, foi condenado à morte, a morte mais ignominiosa do tempo: a morte na cruz. Acusações sem consistência, calúnias, testemunhas falsas, autoridades pusilânimes, tribunais ao serviço dos caprichos humanos, tudo, tudo convergiu contra Jesus que, por obediência ao Pai e por amor aos homens, se foi entregando, esvaziando, abandonando, até se entregar nos braços do Pai, sem oferecer violência à violência. Pelo contrário, antes de tudo estar consumado, Ele pede o perdão para quem o matava. E morreu, e foi sepultado, e fez-se silêncio, e tornou-se fonte de salvação para todos os homens. A lógica de Deus não é a nossa lógica. Esta procura realizar-se através do poder, do ter e da construção de torres de Babel para atingir e ser como Deus. A Cruz recorda-nos que a realização plena consiste em conformar a vontade humana à vontade de Deus Pai. Obedecendo, Jesus carregou a cruz de todos os homens, as cruzes duma humanidade sofredora. Se Adão, desobedecendo e confiando nas suas próprias forças, ao pretender ser como Deus perdeu a sua dignidade original, Jesus, por sua vez, em total fidelidade ao Pai, sendo de condição divina, rebaixou-se, entrou na condição humana para redimir o Adão que está em nós e restituir ao homem a dignidade que perdera (cf. Bento XVI, 27-6-2012). “Ele tinha a condição divina, mas não se apegou à sua igualdade com Deus. Pelo contrário, esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de servo e tornando-Se semelhante aos homens. Assim, apresentando-Se como simples homem, humilhou-Se a Si mesmo, tornando-Se obediente até à morte, e morte de cruz! Por isso, Deus o exaltou grandemente, e Lhe deu o Nome que está acima de qualquer outro nome; para que, ao nome de Jesus, se dobre todo o joelho no céu, na terra e sob a terra; e toda a língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para glória de Deus Pai” (Fil 2, 6-11).
Jesus continua a fazer-nos o convite: «Se alguém quiser vir após Mim, renegue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-Me» (Mt 16, 24). E siga-me, isto é, partilhe comigo o mesmo caminho, mesmo que o mundo não compreenda e ache ser uma derrota. E aponta o modo de o fazer: “Então Jesus, levantou-Se da mesa, tirou o manto, pegou numa toalha e atou-a à cintura. Deitou água numa bacia e começou a lavar os pés aos discípulos e a enxugá-los com a toalha que tinha à cintura (…) sentou-Se de novo e perguntou: «Compreendeis o que vos fiz? Vós chamais-Me “o Mestre” e “o Senhor”, e dizeis bem, porque o sou. Ora, se Eu, o Senhor e o Mestre, vos lavei os pés, também vós vos deveis lavar os pés uns aos outros» (Jo 13, 13-14). 
Nestes dias de pandemia tão aflitivos, com o Papa Francisco saibamos apreciar aqueles que hoje estão a “escrever os acontecimentos decisivos da nossa história: médicos, enfermeiros e enfermeiras, trabalhadores dos supermercados, pessoal da limpeza, curadores, transportadores, forças policiais, voluntários, sacerdotes, religiosas e muitos – mas muitos – outros que compreenderam que ninguém se salva sozinho. Perante o sofrimento, onde se mede o verdadeiro desenvolvimento dos nossos povos, descobrimos e experimentamos a oração sacerdotal de Jesus: «Que todos sejam um só» (Jo 17, 21). Quantas pessoas dia a dia exercitam a paciência e infundem esperança, tendo a peito não semear pânico, mas corresponsabilidade! Quantos pais, mães, avôs e avós, professores mostram às nossas crianças, com pequenos gestos do dia a dia, como enfrentar e atravessar uma crise, readaptando hábitos, levantando o olhar e estimulando a oração! Quantas pessoas rezam, se imolam e intercedem pelo bem de todos! A oração e o serviço silencioso: são as nossas armas vencedoras”.
Celebrando a Paixão, Morte e Ressurreição de Cristo, adoremos a Cruz. Nela encontramos “Aquele que não aponta o dedo contra ninguém, mas abre os braços para todos; que não nos esmaga com a sua glória, mas se despe por nós; que não nos ama em palavras, mas nos dá a vida em silêncio; que não nos obriga, mas nos liberta; que não nos trata como estranhos, mas assume os nossos males, os nossos pecados. Para nos libertar dos preconceitos sobre Deus, olhemos o crucifixo e depois abramos o Evangelho (…) Não se esqueçam: Crucifixo e Evangelho! A liturgia doméstica será essa”, diz-nos Francisco.
Santa Páscoa!

Antonino Dias
Portalegre-Castelo Branco, 09-04-2020.

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