Muito antes do tempo dos afonsinhos, há cerca de três mil anos mais segundo menos segundo, Israel sofreu as passas do Algarve com a Síria, ao tempo uma grande potência. Neste tempo da Quaresma em que cada um é convidado a guerrear-se contra as adversas potências interiores, é bom reconhecer a capacidade de resistência e deitar mão das armas que conduzam à vitória. Porque o testemunho, negativo ou positivo, de outros nos pode ajudar nessa tarefa, hoje apresento-lhes um belo exemplar.

Nos tempos referidos, o exército da Assíria era comandado por Naamã, um grande estratega, muito aplaudido e confiante nas suas próprias forças. Um dia, porém, a doença bateu-lhe à porta, ficou fraco e leproso. A lepra, uma das doenças mais antigas da humanidade, era uma doença terrível, não só pelos danos ao corpo, mas também porque era atribuída a libertinagens, pecados, castigos divinos, e sei lá mais o quê!… Sem cura e contagiosa, ela reclamava o afastamento da comunidade, osso duro de roer e ruminar , mas era assim, um grilhão difícil de suportar. E que fazer agora com o ilustre general? O que não fazer? Como sair desta? Eis a questão!… Sim, essa era a questão de Naamã e dos seus. E qual será a nossa questão nestas pelejas da Quaresma?

Quando as tropas da Assíria atacaram Israel, levaram, prisioneira, uma jovenzinha, que ficou ao serviço da esposa de Naamã. Sem ressentimentos por ter sido deportada – apanágio dos simples e humildes! -, esta jovem compadeceu-se do doente e falou à sua patroa, que, em Israel, havia um senhor, o profeta Eliseu, que seria capaz de o curar. Naamã, talvez incrédulo, .contou ao rei da Assíria o que esta menina havia dito à sua esposa. O rei animou Naamã, e, como já nesse tempo as havia, até lhe meteu uma cunha: “Vá. Eu lhe darei uma carta que você entregará ao rei de Israel”. Animado pela sugestão da jovem, feliz pelo empurrão do rei, confiante na possibilidade de recuperar a saúde, o general lá partiu, ele e a sua comitiva. Ao chegar ao destino, logo entrega a carta ao rei de Israel, que dizia: “Quando receber esta carta, verá que lhe mando o meu servo Naamã para que o cure da lepra”. Ora, não se reconhecendo com capacidade de curar fosse quem fosse, o rei de Israel ficou com os azeites, “rasgou as próprias vestes”, diz o texto. Como gato escaldado de água fria tem medo, pensou que aquilo era uma engenhosa cilada do rei da Assíria para o tramar. E foi o cabo dos trabalhos! 

Entretanto, Eliseu, o homem de Deus, soube que o seu rei, o rei de Israel, estava em apuros, não sabia o que fazer perante aquela comitiva reforçada pela cunha do rei da Assíria. Então, Eliseu comunicou ao rei de Israel que mandasse o general assírio ter com ele. Ó pernas para que vos quero!… Dito e feito, o rei, em jeito de quem lhe saiu a sorte grande e mais qualquer coisa, logo despachou Naamã e toda a comitiva ao encontro de Eliseu. Eliseu, porém, se queria dizer ao rei de Israel que na sua própria terra existia um profeta, também quis usar de pedagogia para com o importante general assírio. Encheu-se de nove horas, empoleirou-se, fez-se caro, não apareceu para recebeu pessoalmente o famoso militar. E se não o mandou aos ninhos, mandou alguém dizer-lhe que fosse tomar banho, que fosse mergulhar-se no rio e ficaria curado: “Vai, lava-te sete vezes no Jordão, e a tua carne será restaurada, ficarás limpo” (2 Reis 5,10). Naamã, um general de gabarito, de tantos pergaminhos e feitos heroicos, sentiu-se humilhado, não gostou, ficou aborrecido e bravo. Esperava um acolhimento pessoal e delicado da parte do profeta e, com certeza, pensaria que ele fizesse para ali umas mezinhas, o curasse e mandasse embora são e salvo, tal como hoje, infelizmente, até entre cristãos, ainda se procura no ler ou deitar das cartas, no bruxedo, magos, adivinhos e quejandos a solução para os problemas da vida. Não sendo assim, e tendo-o ele mandado mergulhar no rio Jordão, Naamã bateu o pé e prendeu o burrinho, qual criança caprichosa. Como se não bastasse, casquinou para quem quis ouvir que, na sua terra, havia rios muito mais importantes que aquele e com águas muito mais cristalinas que essas. Apressado e a rabujar, pôs os pés a caminho para se ir embora e mandar o profeta à fava. Como afirmava Clemente XIV, “nada mais pequeno do que um grande dominado pelo orgulho”, o que até dá espetáculo digno de se admirar, pela negativa! Podemos imaginar a fita deste senhor, que, cheio de importâncias balofas, superioridades presumidas e preconceitos injustos, até no pedir se manifestava pretensioso e a querer mandar, seguro que estava no seu amor próprio de quem se julga sempre com razão! 

Os membros da sua comitiva, embora apreciando a tensão do momento, estavam mais racionais e mais frescos para resistir ao embate. Encaixaram o recado de Eliseu e deitaram água na fervura de Naamã. Porque não era coisa difícil, convenceram Naamã a que, mesmo contrariado, descesse ao rio e se banhasse. Naamã, talvez com vontade bélica de armar ali mais uma guerra e enfiar o profeta e os presentes na barca de Caronte, cedeu à força de persuasão dos seus servos. Mesmo contrariado, lá foi mergulhar sete vezes no Jordão. 

Se o profeta foi “malandro” para o fazer descer à terra, aquilo que para Naamã não fazia sentido e seria uma humilhação, foi o que realmente o curou. Só quando saiu dos seus búnqueres e castelos de defesa, só quando desceu das suas importâncias e orgulho pátrio, só quando resolveu deixar-se de preconceitos e aceitar o que lhe era proposto, é que foi curado. Vendo-se recauchutado e novo, ficou sem jeito por ter reagido como reagiu e desfaz-se em salamaleques. Fez um ato de fé no Deus único de Israel, reconheceu Eliseu como aquele que mostra a presença de Deus no meio do povo e quis dar-lhe um valioso presente, com o qual vinha prevenido. Eliseu, mesmo perante a insistência do general, não aceitou. O general promete deixar a idolatria e, doravante, só prestar culto ao Deus de Israel, o único que pode curar e a quem se sentia profundamente grato pelo facto de o ter tornado um homem verdadeiramente novo. E parte, feliz e saudável, reiterando fidelidade ao Senhor Deus de Israel e, agora humildemente, pedindo terra, terra dali, terra que carregasse duas mulas, para, lá, na Assíria, sobre essa terra, levantar um altar ao Deus único.

Deus faz-se encontrado através duma lógica muito diferente da nossa lógica. Ele serve-se das coisas mais díspares e insignificantes para nos dizer que está presente e atento. Quem crê em Deus e acredita que Ele pode restaurar o centro e as periferias da sua vida, não pode ter a pretensão de lhe querer dar ordens, de lhe querer dizer como é que Ele deve fazer, apoiado em egocentrismos que destroem. Nem deve encaprichar só porque Ele não age como se gostaria que agisse. Essa atitude seria sinal de que não estamos dispostos a deixar as nossas razões e importâncias, as nossas rotinas e seguranças, sendo julgadas, por nós e só por nós, como verdadeiro caminho de fidelidade e salvação. Mas será que serão se não estamos dispostos a fazer o que Ele pede, tal como aconteceu com o referido general? Este queria impor-lhe como é que Ele haveria de fazer. Também pode acontecer que permaneçamos ensonados ou fossilizados nessas rotinas egocêntricas, vivendo instalados na idolatria e na indiferença, julgando-nos não só bons, mas os primeiros entre os bons, sentindo-nos até com razões para exigir de Deus o bom e o melhor, e da forma que nós entendemos. Se assim for, não passaremos de cristãos de meia-tigela. Mesmo que difícil e em revolta, o general acabou por fazer caminho e ficar curado, no corpo e no espírito, não como resultado de um ritual mágico nas águas do Jordão, mas como fruto da ação salvífica de Deus que atuou através da palavra do profeta. É interessante reparar que foi aquela jovenzinha, escrava no estrangeiro, que iniciou o processo. Ultrapassou fronteiras, apontou o Deus único capaz de curar e dar a vida. Também foram os humildes servos do general que o ajudaram a seguir a palavra do profeta. Se estamos desafiados à humildade e à conversão, reconheçamos também quanto bem podemos fazer anunciando Aquele que cura e dá a Vida. 

A Quaresma não é só para os outros, também é para nós!

 

Antonino Dias

Portalegre-Castelo Branco, 26-02-2021.

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