Vivemos um tempo de grande progresso, sim, mas também de grande ameaça. O homem parece ameaçado pelo resultado do seu trabalho, da sua inteligência e das tendências da sua vontade. Há medo dos ambiciosos com cerviz dura e coração de pedra! O homem teme que alguns dos seus produtos, “aqueles que encerram uma especial porção da sua genialidade e da sua iniciativa, possam ser voltados de maneira radical contra si mesmo; teme que eles possam tornar-se meios e instrumentos de uma inimaginável autodestruição, perante a qual todos os cataclismos e as catástrofes da história, que nós conhecemos, parecem ficar a perder-se de vista”, isto afirmava São João Paulo II na sua primeira Carta Encíclica, Redentor Hominis, em 1979 (RH15), que relemos. Denunciava que, de facto, o progresso, sob vários aspetos, torna a vida humana mais digna do homem, mas parece que não o torna verdadeiramente melhor. Embebecido pelo seu poder, pela euforia do seu bem-estar, pelo entusiasmo das suas conquistas, nem sempre o homem prima pelo seu progresso moral e espiritual, nem sempre o progresso é acompanhado pelas exigências objetivas da ordem moral, da justiça e do amor social. E tantos são os sintomas desta doença a reclamarem soluções audaciosas e criativas, de harmonia com a dignidade do homem! Sim, será verdade, perguntava-se ele, que o progresso tem tornado o homem “mais amadurecido espiritualmente, mais consciente da dignidade da sua humanidade, mais responsável, mais aberto para com os outros, em particular para com os mais necessitados e os mais fracos, e mais disponível para proporcionar e prestar ajuda a todos”? Será que o homem, “enquanto homem, desenvolve-se e progride, ou regride e degrada-se na sua humanidade?”. Sem sermos pessimistas e aplaudindo entusiasticamente o progresso da ciência, da técnica e de todo o saber humano – fruto maravilhoso dos talentos que Deus dá a cada um para que cada um os coloque a render ao serviço de todos! -, muito desejaríamos que entre os homens, à medida que se vai progredindo, crescesse o bem, o amor social, o respeito pelos direitos dos outros, o respeito pela terra sagrada de cada nação, de cada povo. Constata-se, porém, que em vez disso, crescem os egoísmos, os nacionalismos e imperialismos doentios, a tendência para dominar os outros numa ambição de poder sem limites. E “nada mais pequeno que um grande dominado pelo orgulho”, dizia Clemente XIV. A par, constata-se o sofrimento dos mais frágeis e o daqueles que já não produzem e as sociedades consideram como um peso a descartar. Alguém lembrava por estes dias que, só no Canadá, no ano passado, foram eutanasiadas 10.000 pessoas. Referia que o próprio Diretor do Instituto Canadiano para a inclusão e cidadania da Universidade da Colômbia Britânica, descreveu a lei canadiana como “provavelmente a maior ameaça existencial para os deficientes desde o programa nazi da Alemanha nos anos 30 (do século XX)”. 

Eu sei, foi Jesus quem primeiro estabeleceu a regra de separação entre o poder temporal e espiritual, princípio hoje consolidado nas nossas democracias, embora durasse muitos séculos a ser implementado: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. Este princípio, porém, não isenta que também César saiba dar a Deus o que é de Deus e ao povo o que é do povo: “Não matarás” (Ex 20,13). “Por isto vos hão de reconhecer: se vos amardes uns aos outros como Eu vos amei” (Jo 13,34-35). E Pilatos perguntou a Jesus: “De onde és tu?” Jesus ficou calado. Então Pilatos perguntou: “Não me respondes? Não sabes que tenho autoridade para te soltar e autoridade para te crucificar?” Jesus respondeu: “Não terias nenhuma autoridade sobre Mim se ela não te fosse dada por Deus” (Jo 19, 9-11). Quando, quem está legitimamente investido em poder, perde a origem e a razão de ser do seu lugar e da sua missão, temos o caldo entornado, temos pigmeus arvorados em deuses a pensar que tudo lhes é permitido! A História é mestra em tais lições!

Como guardião do mundo visível que lhe foi confiado, o homem não deve ser ‘o lobo do outro homem’, na célebre frase de Thomas Hobbes. Mas sê-lo-á tanto mais quanto mais viver preocupado e excessivamente ocupado com o ter cada vez mais em detrimento do ser cada vez mais e melhor; quanto mais o foco da sua atenção forem as estruturas rentáveis, os mecanismos financeiros, e monetários e produtivos e comerciais, delapidando, inclusive, a seu bel-prazer, os recursos naturais, como sôfrego explorador e não como nobre senhor e guarda inteligente e respeitoso da criação; quanto mais prioridade der à técnica que à ética, às coisas que às pessoas, à matéria que ao espírito; quanto menos procurar responder, com determinação absoluta, às situações sociais injustas, aos desafios urgentes e às exigências éticas do presente. Este seu proceder, faz aumentar as zonas miseráveis e aumenta os pobres a caminharem de braço dado com a angústia, a frustração e a amargura.

 O homem não pode perder o fio à meada nos dinamismos da vida e da civilização, “não pode renunciar a si mesmo, nem ao lugar que lhe compete no mundo visível; não pode tornar-se escravo das coisas, escravo dos sistemas económicos, escravo da produção e escravo dos seus próprios produtos. A civilização de feição puramente materialista condena o homem a tal escravidão” (cf. RH15-16).

O progresso é, na sua origem e na sua essência, uma vocação, afirmava Paulo VI na Populorum Progressio (PP15). E o Papa Bento XVI, citando-o na Caritas in Veritate, acrescenta que a vocação é um apelo que exige resposta livre e responsável. Então, como vocação, o desenvolvimento humano integral supõe a liberdade responsável da pessoa e dos povos, supõe o respeito pela sua verdade, supõe a centralidade da caridade, isto é, a fraternidade entre os homens e os povos. Se assim não for, “A sociedade cada vez mais globalizada torna-nos vizinhos, mas não nos faz irmãos” (cf. CV17-19). E é pena!

A verdade vos libertará (Jo 8, 32), disse-nos Cristo que veio ao mundo para dar testemunho da verdade (Jo18,37). Unindo-se “de certo modo a cada homem”, Deus, em Cristo e por Cristo, revelou-se plenamente à humanidade, aproximou-se definitivamente dela, e o homem foi ganhando mais consciência da sua dignidade, da sua elevação, do valor transcendente da própria humanidade e do sentido da sua existência (cf. RH11).

 O homem não pode fugir de si mesmo, não deve relativizar a verdade ou viver de aparências, não deve querer notabilizar-se destruindo os outros. A sua autonomia e liberdade, a sua capacidade de criar, de progredir e se organizar em sociedade, implica respeito por todos, implica uma relação responsável e honesta com a verdade sobre si mesmo e os outros, sobre as coisas e sobre o mundo.



Antonino Dias

Portalegre-Castelo Branco, 16-12-2022.

 

 

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