Com efeito, “a nível individual e comunitário, a indiferença para com o próximo – filha da indiferença para com Deus – assume as feições da inércia e da apatia, que alimentam a persistência de situações de injustiça e grave desequilíbrio social, as quais podem, por sua vez, levar a conflitos ou de qualquer modo gerar um clima de descontentamento que ameaça desembocar, mais cedo ou mais tarde, em violências e insegurança.

Celebramos hoje, ainda a viver na alegria do nascimento de Cristo, a Solenidade Litúrgica de Santa Maria, Mãe de Deus, Rainha da Paz. Desde 1968 que, por iniciativa do Papa Paulo VI, o primeiro dia do ano é também o Dia Mundial da Paz. Sendo o primeiro dia do novo ano civil, desejamos que, com a luz e a graça de Deus Menino, a ternura e o olhar atento e materno de Nossa Senhora, seja, de facto, um ano de muita paz para cada pessoa, para cada família, para cada instituição, para cada país e para todo o mundo.

Como sabemos, a paz é um dom de Deus, confiado aos cuidados e ao trabalho de cada um e de todos nós, sem exceção. Com a graça de Deus, temos a capacidade de superar o mal e de servir a paz. Não nos podemos render “à resignação e à indiferença”, perante as trágicas consequenciais da violência, da guerra, das perseguições, da exclusão social, de todo o sofrimento humano causado pelo homem ao próprio homem, quando esquece a igual dignidade de cada pessoa e de cada povo e a “vocação fundamental à fraternidade universal e à vida comum”.

O Papa Francisco, na sua Mensagem para este dia, alerta-nos para a necessidade de conquistar a paz e de não cairmos no comportamento da indiferença, no comportamento “de quem fecha o coração desinteressando-se dos outros, de quem fecha os olhos para não ver o que acontece ao seu redor ou se esquiva para não ser abalroado pelos problemas alheios”. Esta atitude da indiferença, diz ele, “carateriza uma tipologia humana bastante difundida e presente em cada época da história; mas, hoje em dia, superou decididamente o âmbito individual para assumir uma dimensão global, gerando o fenómeno da globalização da indiferença”.

Não é a primeira vez que o Papa aborda este tema da indiferença, aliás, está muito presente em variadíssimas comunicações suas. Desta vez, vem-nos recordar que a“ primeira forma de indiferença na sociedade humana é a indiferença para com Deus, da qual deriva também a indiferença para com o próximo e a criação. Trata-se de um dos graves efeitos dum falso humanismo e do materialismo prático, combinados com um pensamento relativista e niilista. O homem pensa que é o autor de si mesmo, da sua vida e da sociedade; sente-se autossuficiente e visa não só ocupar o lugar de Deus, mas prescindir completamente d’Ele; consequentemente, pensa que não deve nada a ninguém, exceto a si mesmo, e pretende ter apenas direitos.

A indiferença para com o próximo assume diferentes fisionomias. Há quem esteja bem informado, ouça o rádio, leia os jornais ou veja programas de televisão, mas fá-lo de maneira entorpecida, quase numa condição de rendição: estas pessoas conhecem vagamente os dramas que afligem a humanidade, mas não se sentem envolvidas, não vivem a compaixão. Este é o comportamento de quem sabe, mas mantém o olhar, o pensamento e a ação voltados para si mesmo.

De facto, a informação não basta. Tem de haver uma mudança de mentalidade e uma cultura de solidariedade, de misericórdia e compaixão. Diz o Papa que:

“Infelizmente, temos de constatar que o aumento das informações, próprio do nosso tempo, não significa, de por si, aumento de atenção aos problemas, se não for acompanhado por uma abertura das consciências em sentido solidário. Antes, pode gerar uma certa saturação que anestesia e, em certa medida, relativiza a gravidade dos problemas. «Alguns comprazem-se simplesmente em culpar, dos próprios males, os pobres e os países pobres, com generalizações indevidas, e pretendem encontrar a solução numa “educação” que os tranquilize e transforme em seres domesticados e inofensivos. Isto torna-se ainda mais irritante, quando os excluídos veem crescer este câncer social que é a corrupção profundamente radicada em muitos países – nos seus governos, empresários e instituições – seja qual for a ideologia política dos governantes».

Noutros casos, a indiferença manifesta-se como falta de atenção à realidade circundante, especialmente a mais distante. Algumas pessoas preferem não indagar, não se informar e vivem o seu bem-estar e o seu conforto, surdas ao grito de angústia da humanidade sofredora. Quase sem nos dar conta, tornámo-nos incapazes de sentir compaixão pelos outros, pelos seus dramas; não nos interessa ocupar-nos deles, como se aquilo que lhes sucede fosse responsabilidade alheia, que não nos compete.” Esta indiferença denunciada pelo Papa, indiferença que provoca o fechar-se em si e o desinteressar-se pelos outros, acaba por contribuir para a falta de paz com Deus, com o próximo e com a criação, a casa comum, e tem repercussões na esfera pública e social.

Com efeito, “a nível individual e comunitário, a indiferença para com o próximo – filha da indiferença para com Deus – assume as feições da inércia e da apatia, que alimentam a persistência de situações de injustiça e grave desequilíbrio social, as quais podem, por sua vez, levar a conflitos ou de qualquer modo gerar um clima de descontentamento que ameaça desembocar, mais cedo ou mais tarde, em violências e insegurança.

Depois, quando investe o nível institucional, a indiferença pelo outro, pela sua dignidade, pelos seus direitos fundamentais e pela sua liberdade, de braço dado com uma cultura orientada para o lucro e o hedonismo, favorece, e às vezes justifica, ações e políticas que acabam por constituir ameaças à paz. Este comportamento de indiferença pode chegar inclusivamente a justificar algumas políticas económicas deploráveis, precursoras de injustiças, divisões e violências, que visam a consecução do bem-estar próprio ou o da nação. Com efeito, não é raro que os projetos económicos e políticos dos homens tenham por finalidade a conquista ou a manutenção do poder e das riquezas, mesmo à custa de espezinhar os direitos e as exigências fundamentais dos outros.”

No espírito do Jubileu da Misericórdia, cada um é chamado, neste Dia Mundial da Paz, “a reconhecer como se manifesta a indiferença na sua vida e a adotar um compromisso concreto que contribua para melhorar a realidade onde vive, a começar pela própria família, a vizinhança ou o ambiente de trabalho”. Há quem pense que tem razão porque grita mais alto ou é mais forte. Há quem pense que só tem direitos a exigir e nenhuns deveres a cumprir. Há quem se julgue orgulhosamente dono e senhor dos outros. Há indelicadeza e grosseria na linguagem, agressividade no falar e até no olhar. Há ódios e amuos que não pedem nem dão explicações. Há muitas formas de humilhar, ofender, de fazer guerra. A segunda leitura que ouvimos, acentuava que todos somos filhos adotivos de Deus, irmãos em Cristo. Não escravos, mas filhos, e Deus não faz aceção de pessoas. Não é indiferente, não abandona, ama-nos infinitamente. Sendo a misericórdia o coração de Deus, assim “deve ser também o coração de todos aqueles que se reconhecem membros da única grande família dos seus filhos; um coração que bate forte onde quer que esteja em jogo a dignidade humana, reflexo do rosto de Deus nas suas criaturas. Jesus adverte-nos: o amor aos outros – estrangeiros, doentes, encarcerados, pessoas sem-abrigo, até inimigos – é a unidade de medida de Deus para julgar as nossas ações.”

Pedindo que Santa Maria, Mãe de Deus, Rainha da Paz e Rainha do Lar, vos faça sentir a sua proteção para que possais vencer a indiferença e conquistar a paz, faço minha a bênção da liturgia judaica ainda hoje em uso, e também eu vos digo: o Senhor vos abençoe e proteja. O Senhor faça brilhar sobre vós a sua face e vos seja favorável. O Senhor volte para vós os seus olhos e vos conceda a paz”.

Antonino Dias

Partilhar:
Comments are closed.