… Quando se observa o fenómeno do comércio de pessoas, do tráfico ilegal de migrantes e de outras faces conhecidas e desconhecidas da escravidão, fica-se frequentemente com a impressão de que o mesmo tem lugar no meio da indiferença geral, uma indiferença globalizada. …

Ao lhes ter sido anunciado o nascimento do Menino, os Pastores, refletindo a alegria e a esperança viva de quem acredita, dirigiram-se apressadamente para Belém. Encontraram Maria, José e o Menino. Da contemplação deste Menino envolto em faixas e deposto na manjedoura, isto é, da contemplação deste mistério de amor terno, simples e próximo, a notícia que os levou a este encontro, faz-se luz e vida nas suas vidas e não podem deixar de partilhar tudo quanto lhes tinham dito acerca deste Menino, causando, assim, admiração naqueles que os ouviam. Regressaram, glorificando e louvando a Deus, por tudo o que tinham ouvido e visto. Maria, por sua vez, na sua ternura de mãe e envolta em silêncio fecundo, escuta e contempla o invisível com os olhos do coração, tenta perceber a grandeza do amor de Deus pelo homem e pela sua dignidade, chegando ao ponto de enviar o seu Filho, nascido de uma mulher e sujeito à Lei, para resgatar os que estavam sujeitos à Lei e os tornar seus filhos e herdeiros, e não escravos (2ª Leitura).

A solenidade que enche o dia de hoje é, pois, a Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus. Tem as suas raízes no dogma da maternidade divina de Maria, definido no Concílio de Éfeso, em 431, para afirmar a natureza humana do Filho de Deus. É uma verdade que encerra em si a essência do cristianismo. Maria não é grande em si mesma pois é nossa irmã na sua condição de criatura. Mas é grande, isso sim, por ser a Mãe do Filho de Deus, imaculada, cheia de graça e bem-aventurada, Mãe e primeira discípula. O Papa Paulo VI, desde 1968, associou a esta Solenidade e primeiro dia do ano, a Celebração do Dia Mundial da Paz. Hoje é o 48º Dia Mundial da Paz ao qual o Papa Francisco deu como tema ”Não mais escravos, mas irmãos”. Referindo-se à escravatura como “um fenómeno abominável, que espezinha os direitos fundamentais e aniquila a liberdade e dignidade do outro”, Francisco vem pedir “um compromisso comum institucional para vencer a escravatura, a três níveis: prevenção, proteção das vítimas e ação judicial contra os responsáveis”, bem como pede um esforço global aos Estados e à sociedade, para “combater as redes do crime organizado que gerem o mercado de pessoas humanas e o tráfico ilegal dos migrantes”.

Na verdade, este “flagelo generalizado da exploração do homem pelo homem fere gravemente a vida de comunhão e a vocação a tecer relações interpessoais marcadas pelo respeito, a justiça e a caridade”. E este fenómeno assume múltiplas formas. Sabemos que “todas as pessoas estão, por natureza, relacionadas umas com as outras, cada qual com a própria especificidade e todas partilhando a mesma origem, natureza e dignidade. Em virtude disso, a fraternidade constitui a rede de relações fundamentais para a construção da família humana criada por Deus”. No entanto, o pecado e o consequente abandono de Deus levam ao abandono do homem e “traduz-se na cultura da servidão”, com todas as suas consequências como: “rejeição do outro, maus-tratos às pessoas, violação da dignidade e dos direitos fundamentais, institucionalização de desigualdades”.

Apesar d’ “a comunidade internacional ter adotado numerosos acordos para pôr termo à escravatura em todas as suas formas e ter lançado diversas estratégias para combater este fenómeno, ainda hoje milhões de pessoas – crianças, homens e mulheres de todas as idades – são privadas da liberdade e constrangidas a viver em condições semelhantes às da escravatura”. Há – diz o Santo Padre – há “trabalhadores e trabalhadoras, mesmo menores, escravizados nos mais diversos sectores, a nível formal e informal, desde o trabalho doméstico ao trabalho agrícola, da indústria manufatureira à mineração, tanto nos países onde a legislação do trabalho não está conforme às normas e padrões mínimos internacionais como – ainda que ilegalmente – naqueles cuja legislação protege o trabalhador”; há “muitos migrantes que, ao longo do seu trajeto dramático, padecem a fome, são privados da liberdade, despojados dos seus bens ou abusados física e sexualmente”; há “pessoas obrigadas a prostituírem-se, entre as quais se contam muitos menores”; há “escravas e escravos sexuais”; há “mulheres forçadas a casar-se, quer as que são vendidas para casamento quer as que são deixadas em sucessão a um familiar por morte do marido, sem que tenham o direito de dar ou não o próprio consentimento”; há menores e adultos que “são objeto de tráfico e comercialização para remoção de órgãos, para ser recrutados como soldados, para servir de pedintes, para atividades ilegais como a produção ou venda de drogas, ou para formas disfarçadas de adoção internacional”; há muitos “que são raptados e mantidos em cativeiro por grupos terroristas, servindo os seus objetivos como combatentes ou, especialmente no que diz respeito às meninas e mulheres, como escravas sexuais. Muitos deles desaparecem, alguns são vendidos várias vezes, torturados, mutilados ou mortos”; há inúmeras pessoas raptadas (também) “para ser vendidas, recrutadas como combatentes ou exploradas sexualmente, enquanto outras se veem obrigadas a emigrar, deixando tudo o que possuem: terra, casa, propriedades e mesmo os familiares. Estas últimas, impelidas a procurar uma alternativa a tão terríveis condições, mesmo à custa da própria dignidade e sobrevivência, arriscam-se assim a entrar naquele círculo vicioso que as torna presa da miséria, da corrupção e das suas consequências perniciosas”.

Na raiz de tudo isto “está uma conceção da pessoa humana que admite a possibilidade de a tratar como um objeto. Quando o pecado corrompe o coração do homem e o afasta do seu Criador e dos seus semelhantes, estes deixam de ser sentidos como seres de igual dignidade, como irmãos e irmãs em humanidade, passando a ser vistos como objetos. Com a força, o engano, a coação física ou psicológica, a pessoa humana – criada à imagem e semelhança de Deus – é privada da liberdade, mercantilizada, reduzida a propriedade de alguém; é tratada como meio, e não como fim”.

Para além do pecado que corrompe o coração humano, estão, entre outras causas, a pobreza, o subdesenvolvimento e a exclusão, bem como a “corrupção daqueles que, para enriquecer, estão dispostos a tudo”; “os conflitos armados, as violências, a criminalidade e o terrorismo.

Quando se observa o fenómeno do comércio de pessoas, do tráfico ilegal de migrantes e de outras faces conhecidas e desconhecidas da escravidão, fica-se frequentemente com a impressão de que o mesmo tem lugar no meio da indiferença geral, uma indiferença globalizada.

Nos últimos anos, a Santa Sé, acolhendo o grito de sofrimento das vítimas do tráfico e, sobretudo, a voz das congregações religiosas que as acompanham rumo à libertação, multiplicou os apelos à comunidade internacional pedindo que os diversos atores unam os seus esforços e cooperem para acabar com este flagelo.

Mas se o Santo Padre se dirige “a cada homem e mulher, bem como a todos os povos e nações do mundo, aos chefes de Estado e de Governo e aos responsáveis das várias religiões”, também convida cada um de nós, “segundo a respetiva missão e responsabilidades particulares, a realizar gestos de fraternidade a bem de quantos são mantidos em estado de servidão. Convida-nos a que, enquanto comunidade e indivíduo, nos perguntemos como é que nos sentimos interpelados quando, na vida quotidiana, nos encontramos ou lidamos com pessoas que poderiam ser vítimas do tráfico de seres humanos ou, quando temos de comprar, se escolhemos produtos que poderiam razoavelmente resultar da exploração de outras pessoas. Há alguns de nós que, por indiferença, porque distraídos com as preocupações diárias, ou por razões económicas, fecham os olhos. Outros, pelo contrário, optam por fazer algo de positivo, comprometendo-se nas associações da sociedade civil ou praticando no dia-a-dia pequenos gestos como dirigir uma palavra, trocar um cumprimento, dizer «bom dia» ou oferecer um sorriso; estes gestos, que têm imenso valor e não nos custam nada, podem dar esperança, abrir estradas, mudar a vida a uma pessoa que tateia na invisibilidade e mudar também a nossa vida face a esta realidade”.

Na verdade, “a globalização da indiferença, que hoje pesa sobre a vida de tantas irmãs e de tantos irmãos, requer de todos nós que nos façamos artífices duma globalização da solidariedade e da fraternidade que possa devolver-lhes a esperança e levá-los a retomar, com coragem, o caminho através dos problemas do nosso tempo e as novas perspetivas que este traz consigo e que Deus coloca nas nossas mãos”.

Caros fiéis: a Paz não é, como se costuma dizer, a ausência de guerra. É, sim, a presença do amor. É um dom de Deus que devemos pedir, agradecer, cultivar e fomentar. Na esperança de que cada um de nós irá ser ao longo deste ano – ano que desejamos, aliás, muito feliz para todos! –  na esperança, dizia eu, de que ao longo deste ano cada um de nós irá ser construtor da Paz, deixemos ecoar bem fundo dentro de nós aquela tripartida bênção sacerdotal que o Livro dos Números hoje nos apresenta na primeira Leitura e que eu faço minha para cada um de vós neste momento, neste dia e neste ano: “O Senhor te abençoe e te proteja. O Senhor faça brilhar sobre ti a sua face e te seja favorável. O Senhor volte para ti os seus olhos e te conceda a paz”.

Feliz Ano 2015.

Antonino Dias

Bispo Diocesano

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