Pai, nas vossas mãos entrego o Meu Espírito, é uma das mais fortes palavras de Cristo na cruz. Todos os anos nos é oferecido um tempo para que, com o coração em construção, melhor nos preparemos para a Páscoa. É a Quaresma, tempo favorável porque tem ritmo batismal. Tempo de graça porque é dom do Espírito. Tempo de purificação porque ocasião de reconstrução e fortalecimento da nossa relação com Deus, com os outros, com a vida, connosco próprios.

A Páscoa, mistério da morte e ressurreição de Cristo, não se resume ao final feliz de uma história dramática. E se é verdade que existem feridas que dão origem a vidas completamente novas, insuspeitadamente novas e não apenas cicatrizadas, então a Páscoa é a evidência subversiva da graça de Deus que se entranha na humanidade.

No meio de uma humanidade dilacerada por solidões, incompreensões, invejas, divisões e discórdias, feridas diversas, reconhecem-se os sinais da graça e da misericórdia de Deus quando a dureza do coração humano se dobra e se prepara para a reconciliação e para a alegria. Reconhecem-se os sinais da graça quando, movidos os corações por ação do Espírito Santo, os inimigos procuram entender-se, os adversários se dão as mãos, os povos se encontram na paz e na concórdia. Reconhece-se a evidência subversiva da graça quando o desejo da paz põe fim à guerra, o amor vence o ódio e a vingança dá lugar ao perdão (Cf. Oração Eucarística da Reconciliação II).

Não há Páscoa sem Cristo e não é imaginável pensar Cristo sem o mistério pascal. É a vida de Cristo agarrada à Cruz e superando-a, que é a grande escola da humanidade subvertida por uma ferida de amor. Em Cristo, a hora da ferida e a hora da graça coincidem. É a desproporção do amor paciente, bondoso e partilhado, sem arrogância e sem soberba, sem irritação e sem ressentimento ou rancor. É o amor justo que se regozija com a verdade, que tudo desculpa e tudo crê, que tudo espera e tudo suporta (cf. 1Cor 13, 4 s). A ferida não é para ficar a chorar, é para abrir o coração e reaprender a confiar. E, assim, fazem-se novas todas as coisas. A Páscoa não é apenas uma experiência fugaz, um momento. É dom de Deus. E tão forte que se acolhe como vocação; tão profundo que se erige como identidade; tão inteiro que unifica toda a vida. Páscoa é um modo de ser. O de Cristo. O dos cristãos.

A Quaresma surge precisamente porque, em Igreja e seguindo Cristo, é necessário aprender o seu modo pascal de ser e de viver. Como poderíamos saborear e viver em pleno a sua Páscoa se não nos exercitássemos no seu modo de amar e de se dar!?

Vivemos, por muitas razões e vicissitudes históricas, num mundo ferido. A Igreja, a nível local e universal, defronta-se com imensos desafios, questionamentos e fraquezas. O Sínodo é um desafio, como o são as Jornadas Mundiais da Juventude, mas a Igreja confronta-se também com a sua história e a sua credibilidade pastoral e evangélica. A pandemia feriu o tecido social e afetou pessoas e instituições. A mesma pandemia alterou o acesso aos cuidados de saúde de tantos pacientes, desvaneceu projetos económicos familiares, empobreceu agregados familiares, deixou muitos no desemprego, levou à rutura de imensas possibilidades. A insegurança e a incerteza, aliadas ao receio, alteraram os estilos de vida. As desigualdades sociais e continentais aumentaram. A dimensão relacional das nossas comunidades ressentiu-se. Os ritmos da socialização e até do luto foram alterados. Enfim, e sem ser exaustivo, o mundo, próximo e longínquo, desorganizou-se. Além da dor da ferida, pessoas e comunidades cederam à tentação da comiseração e da lamentação que fez emergir outras dores e abrir outras feridas. São feridas de todos nós.

Na Cruz de Cristo, a hora da maior dor foi também a hora do maior amor: “A minha vida sou Eu que a dou” (Jo 10, 18). O aparente abandono de Deus naquele momento revelou-se, sim, o abandono de Jesus nas mãos de Deus. Cristo faz da sua morte um ato de confiança e de abandono absolutos nas mãos de um Deus em quem se pode confiar: “Tudo vem de Ti e não oferecemos senão o que temos recebido da tua mão” (1 Cro 29,14).

É assim que a confiança se inscreve na história dos homens: “Pai, em Tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23, 46). Na palavra de Cristo que Se entrega totalmente nas mãos do Pai podemos perceber o dinamismo de vida e de amor que está inscrito como confiança no mais íntimo da autêntica existência humana. É o amor mais radical porque diz que não nos bastamos a nós próprios e nos coloca em despojamento. Então, a ferida tornou-se o lugar insuspeitado da revelação de Deus e do seu amor. A ferida deu lugar à leitura retrospetiva da vida. E purificou o projeto seguinte. A ferida tornou-se a lente que permitiu ver a vida com maior verdade. A ferida revelou a sua autêntica dimensão e dispensou vaidades. A ferida, mais do que apenas uma cicatrização indolor e estética, esperou e ansiou a cura. E isso é caminho.

Caminho é também a Quaresma que, preparando a Páscoa, pode ser bem a experiência de abrirmos e expormos as nossas feridas a Deus e, assim, nos aproximarmos das feridas dos outros e do mundo. É legítimo imaginar um mundo sem feridas, mas é também uma ilusão pressupor uma vida e uma história sem feridas. Se percebermos melhor as nossas feridas estaremos mais preparados para valer aos outros nas suas. Olhando para as feridas existentes à nossa volta, a Renúncia Quaresmal deste ano voltará a ser partilhada com a Arquidiocese de Kananga, República Democrática do Congo, nos derradeiros esforços para a conclusão da construção do Centro de Acolhimento e Saúde, já conhecido da nossa Diocese.

Pela oração, pela partilha e misericórdia, pelo jejum, das nossas feridas pode brotar uma vida nova para nós e para os que vivem ao nosso lado. Todos podemos comprometer-nos mais na consecução do bem comum, na dignificação da pessoa humana. Todos podemos partilhar o que temos e o que nos falta. Todos podemos libertar-nos de dependências e de vaidades. Todos podemos superar-nos no acesso à verdade. Todos podemos empreender caminhos em conjunto, escutando-nos, falando do que nos vai na alma. Todos podemos exercitar e viver o abandono e a confiança nas mãos de Deus. A hora da ferida é a hora da graça. É a Páscoa!

Antonino Dias

Portalegre-Castelo Branco, 25-02-2022.

 

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