Pessoas há que nos fazem esbarrar com perspetivas diferentes de ler e olhar a realidade envolvente. Sabem abrir janelas para sacudir tapetes e oferecer a oportunidade para varrer o pó de debaixo deles, o pó que, voluntária ou distraidamente, aí se vai acumulando. Mas não só: também sacodem e provocam quem, julgando-se imune das maleitas sociais e eclesiais, se têm como impermeáveis, mui limpos e asseados no cumprimento ‘exemplar’ do seu dever, ‘como sempre o fizeram’. Mas será esse o caminho certo?

Armando Matteo, italiano de Catanzaro, presenteou-nos com mais um livro a que deu o título “Converter Peter Pan – o destino da fé na sociedade da eterna juventude”. Está traduzido e editado pela Paulinas Editora. Saco daí, mesmo de forma avulsa, algumas ideias para provocar a leitura completa deste livro, no qual, o Autor, na “ausência de uma relação adulta e madura da fé”, pergunta: “que espaço resta para o Evangelho na época do triunfo de Peter Pan?”. Por amor à Igreja e na linha do Papa Francisco, ele denuncia, provoca, sugere coisas que podem fazer mossa em muita gente, seduz ao debate, coloca pistas nos caminhos duma nova, necessária e corajosa ação pastoral que só a fé em Jesus Cristo, o amor à sua Igreja e a força do Espírito podem fazer discernir e despoletar.

Como sabemos, Peter Pan é um personagem criado pelo escocês James Mattheu Barrie. Trata-se de um menino que se recusa a crescer e vive na Terra do Nunca, uma terra mágica, de fantasias. Essa criança, escreve Matteo, tem hoje “alojamento confortável e alimento abundante no coração dos adultos”: vivem num mundo de fantasias, não querem crescer e dificultam que alguém o faça. Com outras fadas Sininho e outros piratas liderados por temíveis Capitães Gancho, o autor chama-nos a atenção para aqueles adultos que hoje procuram sentido no mito da eterna juventude, como se, para voar, a imaginação bastasse. Um mito “alimentado de forma descomedida pelas alavancas económicas e financeiras contemporâneas, graças, sobretudo, ao sistema publicitário e à cultura televisiva”. Com a agravante, diz ele, “de essa máquina económica-cultural estar nas mãos dos próprios adultos!”. Assim, com o único objetivo de movimentar dinheiro, se degradam e esvaziam os adultos e os jovens. O lema é preciso: “Somos livres, somos únicos, para ser e permanecer sempre jovens. Apenas jovens. Nada mais do que jovens. E estamos aqui para beber até à última gota possível esta vida que hoje tão generosamente se encontra nas nossas mãos”. Esta determinação faz com que tenhamos diante de nós “uma massa de quarentões, cinquentões e sessentões que fazem tudo para não envelhecer, chegando assim à idade da velhice sem nunca terem sido adultos, estando, aliás, demasiado ocupados a manter-se jovens, ativando desse modo as condições para liquidar os verdadeiros jovens”.

O Papa Francisco, na Exortação Cristo Vive, alerta para essa “adoração da juventude, como se tudo o que não é jovem aparecesse detestável e caduco”. Diz ele: “O corpo jovem torna-se o símbolo deste novo culto e, consequentemente, tudo o que tenha a ver com este corpo é idolatrado e desejado sem limites, enquanto o que não for jovem é olhado com desprezo. Mas é uma arma que acaba por degradar os jovens, esvaziando-os de valores reais e utilizando-os para obter benefícios individuais, económicos ou políticos”.

E pedindo aos jovens que não se deixem usar para promover esse falso culto da juventude que confunde beleza com aparência e promove uma espiritualidade sem Deus e uma afetividade sem comunidade nem compromisso, a fazer acreditar num futuro paradisíaco que nunca o será, Francisco propõe-lhes “outro caminho, feito de liberdade, entusiasmo, criatividade, horizontes novos, mas cultivando ao mesmo tempo as raízes que nutrem e sustentam” e que saibam “descobrir que há beleza no trabalhador que regressa a casa surrado e desalinhado, mas com a alegria de ter ganho o pão para os seus filhos. Há uma beleza estupenda na comunhão da família reunida ao redor da mesa e no pão partilhado com generosidade, ainda que a mesa seja muito pobre. Há beleza na esposa mal penteada e já um pouco idosa, que continua a cuidar do seu marido doente, para além das suas forças e da própria saúde. Embora já esteja distante a lua de mel, há beleza na fidelidade dos casais que se amam no outono da vida, naqueles velhinhos que caminham de mãos dadas. Há beleza, para além da aparência ou da estética imposta pela moda, em cada homem e cada mulher que vive com amor a sua vocação pessoal, no serviço desinteressado à comunidade, à pátria, no trabalho generoso a bem da felicidade da família, comprometidos no árduo trabalho, anónimo e gratuito, de restabelecer a amizade social. Descobrir, mostrar e realçar esta beleza, que lembra a de Cristo na cruz, é colocar as bases da verdadeira solidariedade social e da cultura do encontro” (cf. CV180-184).

De facto, esta acelerada mudança de época com a sua educação 4.0, tanto para as gerações da transição do mundo analógico para o digital, como para a geração Z, a formada  por aqueles que nasceram dentro da era digital e são considerados nativos digitais, se é uma resposta necessária à quarta revolução industrial, também não se cansa de dinamizar e potenciar o mito da eterna juventude com produtos e serviços pressionados pelos mídia e não só. Quem não mantiver os atributos da juventude, é velho, é cota. Por isso, rejeita-se a idade que se tem para não se assumir o que já se é. Altera-se o aspeto físico, endivida-se a carteira, veste-se à jovem e cuida-se a maquilhagem mesmo que roce o ridículo. E só porque se despreza o envelhecimento natural, se quer competir ou agrupar com quem é jovem e se entende que isso traz beleza e sucesso na vida social, profissional e afetiva.

Matteo explica que este adulto 4.0, o adulto pós-moderno, ‘sem’ mais nada acima e além de si próprio, é o “adulto sem transcendência, sem verdades, sem limites, sem moral e sem política” que “experimenta uma emoção e um sentimento de liberdade e de unicidade que só o pode deixar inebriado”. Para ele, fora da juventude não há possibilidade de salvação. Além disso, se descarta totalmente a cristandade, também obriga a entender, definitivamente, que hoje em dia a fé já não é um pressuposto óbvio da vida, mas é, muitas vezes, marginalizada e até desprezada”. Isto traz desafios não só de ordem antropológica mas sobretudo de ordem profundamente religiosa cujas formas de transmissão da fé não podem ser as da época da cristandade. Tampouco as de mudar isto e aquilo para que tudo fique na mesma. Ao jeito de Cristo, com Ele e a sua mansidão, há que sair ao encontro do Peter Pan, não para que ele nos fascine e converta, mas para que possa ser esclarecido sobre quão nobre é ser adulto e quão bela é a verdadeira plenitude da vida.

E Matteo escreve: “O sinal das igrejas semivazias é-nos oferecido para confessarmos a nós mesmos a verdade: os adultos não-praticantes estão a tornar-se crentes de uma forma diferente. Estão a tornar-se crentes no Deus da juventude e correm cada vez mais o risco de ficar emalhados na grande rede de um sistema económico-financeiro que descobriu que ganha muito dinheiro com esta história do ‘antiage’, com esta promessa ilusória de serem sempre sexy, sempre jovens, sempre em forma, esplendorosos, sexualmente ativos, saudáveis e alegres, sob quaisquer condições meteorológicas. E a este sistema é completamente indiferente que esses lucros consistentes se obtenham ao preço elevadíssimo de um individualismo desenfreado que imbeciliza os adultos, deprime os jovens, descarta os idosos, enlouquece os mais pequenos”.

Antonino Dias

Portalegre-Castelo Branco, 24-06-2022.

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