A frase em título é do Papa Francisco, neste momento em Viagem Apostólica ao Iraque onde vai como “peregrino penitente, de paz e de esperança, em busca da fraternidade”, esperando nós, unidos na oração, que seja coroada dos melhores êxitos. 

Mas será que o pecado não é corrupção e a corrupção não é pecado? Com a devida vénia, vamos pedir mais uma vez a Sua Santidade o favor de nos desembaraçar dessa alhada, já que pecadores somos todos, a corrupção é camaleónica e tentadora, e corruptos não faltam a deambular por aí. Antes, porém, porque também é proveitoso em tempos de confrontação quaresmal, quero acabar a história da semana passada, apresentando-lhes mais um bípede de singular estirpe. Peço ao leitor o favor de ajuizar se se tratará de um corrupto ou de um pecador.

Com certeza que o leitor se lembra que Naamã, sentindo-se curado da lepra, quis gratificar o profeta Eliseu com uma avultada oferta, o qual, mesmo perante a reiterada insistência de Naamã, sempre recusou, deixando até o general assírio um pouco constrangido pelo facto de não lhe ter aceitado nada. Mas a história não acabou aí, tornou-se rocambolesca e acabou mal. Um servo do profeta Eliseu, Geazi, ficou muito surpreendido, para não dizer escandalizado, pelo facto de Eliseu não ter aceitado a valiosa oferta do general Naamã. Caçoou com os seus botões de tal atitude, e, qual chico esperto, pensou que ele próprio é que poderia tirar proveito da situação. Porque a pressa urgia, não deve ter gastado muito tempo a magicar como armar uma espécie de golpe de baú a Naamã. Dá a impressão que só a muita prática por essas andanças, é que o fez, num estalar de dedos, pensar a patranha, a tática e a estratégia para levar a cabo a sua vigarice. E logo saiu, levezinho, ao encontro do general assírio, já a caminho da sua terra. Quando Naamã o viu aproximar-se, talvez esbaforido pela corrida e a fazer sinais de paragem, Naamã desceu da carruagem, mui atencioso e rápido, e, na boa fé, foi ao encontro do finório a perguntar-lhe se alguma coisa havia acontecido: “Está tudo bem?” Geazi, sem titubear, logo responde: “Sim, tudo bem”. Mas depressa desenrola a patranha a convencer Naamã que tinham chegado dois jovens dos lados de Efraim, discípulos do Profeta Eliseu, e que este o mandara atrás de Naamã para lhe pedir, para esses jovens, “trinta e cinco quilos de prata e duas mudas de roupas finas”. Naamã, ainda a saborear a cura e algo desconsolado pelo profeta não ter aceitado nada, mostra-se muito gentil por ser um pedido do profeta Eliseu. E logo responde, duplicando a oferta: “Claro, leve setenta quilos”. Como se não bastasse, depois de colocados os setenta quilos de prata e as mudas de roupa em duas sacolas, Naamã ainda enviou dois dos seus servos para levar as sacas e não sobrecarregar e cansar  Geazi, o chico esperto. Quando chegaram à morada de Geazi, este pegou as sacolas das mãos dos servos, guardou-as em sua casa e mandou os servos de volta, sem sequer lhes oferecer uma bucha e um copito. O espertalhão serviu-se da bondade de Eliseu, da generosidade de Naamã e dos humildes servos deste general assírio. Mas, se Geazi saltou de alegria por ter conseguido o que queria com toda aquela ardilosa solenidade, o tiro saiu-lhe pela culatra, foi mesmo um tesouro corroído pela traça. E se o leitor olhar bem para a cara dele, verá que, de facto, ele não ficou vermelho, ficou mesmo branco, branco como a neve, como bem se pode apreciar. Ao chegar junto do profeta Eliseu, este, habituado e já vacinado contra trapaças  e intrujices, perguntou-lhe: “Onde é que foste, Geazi?”. Geazi, num faz de conta de muita seriedade, mostrou-se firme e, mentindo como todos os corruptos, disse-lhe, com cara de anjinho, que não fora “a lugar nenhum”. Eliseu, porém, não foi na cantiga de mensagem tão doce, e logo retorquiu: “Pensas que o meu espírito não estava presente quando alguém desceu do carro e foi ao teu encontro?”. Talvez a magicar quem seriam as fontes de informação de Eliseu e a ver fugir-lhe o tapete de debaixo dos pés, Geasi escutou o resto, o que não queria ouvir. Disse-lhe Eliseu: “Agora que recebeste o dinheiro, com ele podes comprar roupas, olivais, vinhas, ovelhas, bois, servos e servas. Mas a lepra de Naamã passará para ti e para os teus descendentes para sempre”. E Giazi saiu da presença de Eliseu, branco como a neve, por causa da lepra (2Re 5,1-27). Não sabemos se, o acontecido, foi um mero caso na vida de Geasi, uma hora má, um fracasso, um pecado. Mas, se tivermos em conta a dureza do castigo que Eliseu lhe deu, é bem provável que fosse um corrupto, useiro e vezeiro. Mas, como já é noite, foi há muito tempo e não temos detetives, não vamos averiguar esse sucedido, vamos apenas ouvir Sua Santidade a explicar-nos o sentido da sua afirmação: “Pecadores sim, corruptos não!”. Vou sintetizar, aconselhando a ler “Corrosão-combater a corrupção na Igreja e na sociedade” fruto dum diálogo do Cardeal Peter Turkson com Vittorio Alberti; e “O nome de Deus é misericórdia”, um livro nascido duma conversa do Papa Francisco com Andrea Tornielli, de cujo capítulo VII faço esta síntese. 

Diz Francisco que corrupção e pecado são duas realidades diferentes, apesar de interligadas. O pecador arrepende-se. Se cai e recai no pecado por motivo da sua fraqueza, logo reconhece que voltou a falhar, pede perdão e sente necessidade de misericórdia. Situa-se na linha do que Jesus disse aos seus discípulos: se o teu irmão te ofender sete vezes ao dia e sete vezes te vier dizer que está arrependido, perdoa-lhe. O pecado, sobretudo se reiterado, pode levar à corrupção, se a pessoa cria hábitos que limitam a capacidade de amar e levam à autossuficiência. Alguém pode ser um grande pecador e, no entanto, pode não ter caído na corrupção. Zaqueu, Nicodemos, o bom ladrão e a samaritana, por exemplo, nos seus corações pecadores, todos tinham alguma coisa que os salvava da corrupção, estavam abertos ao perdão, o seu coração pressentia a sua fraqueza e permitiu a abertura à força de Deus. O pecador, ao reconhecer-se como tal, de alguma forma admite que aquilo a que aderiu, ou adere, é falso, não está bem, procura corrigir. Ninguém se transforma em corrupto de repente, há sempre um caminho escorregadio que se vai aceitando.

O corrupto peca, mas em vez de reconhecer o pecado, faz da corrupção um sistema, um hábito mental, uma forma de vida. Não é tanto um ato, mas uma condição que leva a justificar-se a si e aos seus comportamentos. Leva vida dupla, não se arrepende, provoca escândalo, não conhece a humildade, não sente necessidade de ajuda, não sente necessidade de perdão e de misericórdia e acredita que não os deve pedir. Além disso, mostra-se discreto, tem sempre a cara de quem diz: “não fui eu”, esconde aquilo que o torna escravo, disfarça o vício com a boa educação, arranja forma de salvar as aparências. Torna-se hipócrita, apresenta a mentira como verdade, subtraindo a dignidade aos outros, às pessoas e às instituições, privando-se a si próprio de futuro e de dignidade e querendo parecer diferente do que na verdade é. O próprio Evangelho pode ser usado para encobrir a corrupção, a mundanidade espiritual, a hipocrisia, o sentimento de indiferença. Como reza a anedota que por aí se conta, o corrupto não pede riqueza, só pede que lhe digam onde é que ela está que ele se encarregará de a ir lá buscar!

Não é o facto de enrodilhar e ocultar as provas, não é o facto de não ser punido pela justiça humana, tantas vezes também ela corrupta, que faz com que um corrupto deixe de ser corrupto e possa lavar as mãos. Só há um caminho de saída: é o pedido de perdão, a conversão do coração e da mente e a restituição do que roubou. São os pobres quem paga a fatura dos corruptos da política, dos negócios, da economia, da cultura, das instituições, das associações, da Igreja, da sociedade, do ambiente familiar, de todos os atalhos do oportunismo. Como diz Francisco: “o corrupto é como quem tem mau hálito. Quem o tem não se dá conta disso. Só os outros se apercebem…”.

Estamos na Quaresma e a Quaresma é para todos, também para nós!

 

Antonino Dias

Portalegre-Castelo Branco, 05-03-2021.

 

 

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