Esparrela é sinónimo de cilada, burla, arriosca, armadilha, logro, langará, coisa que, se nela caímos, é sempre desagradável. Quem, voluntariamente, pelas razões que só ele sabe, arma uma cilada a alguém, o povo diz que esse arteiro deve ser fraca rés. Quando, porventura, alguém cai num desses ardis por ingenuidade, o mesmo povo diz que esse é um tonho! Pior será se somos nós a fraca rés que arma as ratoeiras e os tonhos que nelas caem! Se assim for, acho que já não bastará um mero ‘tiroteio de palavradas de tarimba’!… Mas vem isto a propósito de quê? Ora…, a propósito de quê!?… De não sermos tonhos nem fraca rés, claro está, mesmo em segredo, ihihihih!

Mesmo em relação aos conteúdos da fé, pode-se cair numa esparrela ou deixar-se ir em cantigas, acabando por comer gato por lebre e por beber zurrapa em vez de Alvarinho, festejando como se fosse um lauto banquete do progresso em reação a uma Igreja que resiste a embarcar em modas, sempre transitórias. As pessoas são livres, são, e bem. São livres para dizerem o que pensam, pensando o que dizem. São livres para seguirem o que ouvem, discernindo o que escutam. São livres para fazer isto ou aquilo, escolhendo o bem. Quem opta pelo mal, acho que não é suficientemente livre, está a ser escravo de si mesmo, das suas circunstâncias e fragilidades, talvez dos outros também. A liberdade, coisa tão bela e preciosa, tem caprichos e rabugens de dama garbosa. Tanto para quem, sem mais, diz o que pensa, segue o que ouve ou faz o que entende. Tal como a verdade, a liberdade reclama diligências de sentinela e cuidados de quem se ama a si e aos outros.

Exemplo: ‘Cristo sim, Igreja não’! Aceitar ou propagar este absurdo pode manifestar, em quem o faz, propósitos armadilhados ou desviantes, quer para minimizar a importância da Instituição, quer para enaltecer a religiosidade ‘à la carte’ ou em ‘self service’, arrastando outros para o mesmo erro. Pode ser fruto de quem diz o que pensa sem pensar o que diz, atestando que isso é que é bom e verdadeiro. Pode mesmo manifestar, na pessoa que o afirma, desconhecimento de Cristo e da Igreja, autodenunciando-se como um craque nesse desconhecimento. No entanto, porque há quem perfilhe ‘Cristo sim, Igreja não’, o Magistério sempre tem alertado para o contrassenso dessa afirmação. Francisco também já o fez. Paulo VI, por exemplo, de quem tenho aqui um seu documento à mão, afirmou que há “momentos em que acontece nós ouvirmos, não sem mágoa, algumas pessoas – cremos que bem-intencionadas, mas, com certeza, desorientadas no seu espírito -, a repetir que pretendem amar a Cristo mas sem a Igreja, ouvir a Cristo mas não à Igreja, ser de Cristo mas fora da Igreja. O absurdo de uma semelhante dicotomia aparece com nitidez nesta palavra do Evangelho: “Quem vos rejeita é a mim que rejeita”. E como se poderia querer amar a Cristo sem amar a Igreja, uma vez que o mais belo testemunho de Cristo é o que São Paulo exarou nestes termos: “Ele amou a Igreja e entregou-se a si mesmo por ela” (EN16).

‘Cristo total’ é Cristo e a Igreja. Podemos dizer que Cristo (Cabeça), não existe sem a Igreja (Corpo). Nem a Igreja (Corpo), existe sem Cristo (Cabeça). Não se pode amar a Cabeça e desprezar o Corpo, tampouco amar o Corpo e desprezar a Cabeça. Há uma ligação íntima entre Cristo e a Igreja a Igreja e Cristo. O Espírito Santo é quem une todas as partes deste Corpo místico, “tanto entre si como com a Cabeça, pois Ele está todo na Cabeça, todo no Corpo, todo em cada um dos seus membros” (CIgC797). Formamos todos um só Corpo, pois participamos todos do único Pão que é Cristo (cf. Cor 10, 16-17).Esta unidade de Cristo e da Igreja implica também a distinção dos dois, numa relação pessoal, muitas vezes apresentada pela imagem do esposo e da esposa. O próprio Senhor se designou como “Esposo” (Mc 2,19), e a Igreja é apresentada como uma esposa ‘desposada’ com Cristo Senhor que a amou e se entregou por ela para a santificar, associou-a a si por uma aliança eterna, não cessando de lhe prestar cuidados (cf. CIgC796): “Serão os dois uma só carne. É esse um grande mistério, digo-o em relação a Cristo e à Igreja” (Ef 5, 29.31-32).

Acreditamos que Cristo, pelo seu ser, presença e atuação, é “Sacramento” de Deus Pai, é sinal vivo, real, atuante e eficaz de Deus entre nós. É pela Encarnação de seu Filho Jesus, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, que o Pai se faz presença salvífica entre nós, quem vê o Filho vê o Pai (cf. Jo 14,9). Aos que creem em Cristo decidiu Deus chamá-los à Santa Igreja, a qual, “prefigurada já desde o princípio do mundo e admiravelmente preparada na história do povo de Israel e na Antiga Aliança, foi constituída no fim dos tempos, e manifestada pela efusão do Espírito Santo, e será gloriosamente consumada no fim dos séculos” (LG2).

Cristo é “Sacramento” de Deus, a Igreja, por sua vez, é “Sacramento” de Cristo. É sinal real da sua presença e foi enviada, por Ele, com uma missão específica, evangelizar. Existe uma ligação profunda entre Cristo, a Igreja e a evangelização. A evangelização não se realiza sem a Igreja, muito menos contra a Igreja ou deturpando o projeto de Deus da qual ela é depositária e guardiã, um projeto sempre atual e atuante, em todos os tempos e lugares. Isto não quer dizer que ela, a Igreja, porque também é humana, não deva estar sempre sujeita ao escrutínio alheio e próprio, até porque isso a ajuda a crescer e a melhor servir, sem desvios.

Nascida da ação evangelizadora de Jesus e dos Apóstolos, nascida da missão, a Igreja é enviada por Jesus, como sinal, como sacramento da sua partida e da sua permanência, é sua cooperadora na obra da salvação universal, é através dela que Jesus cumpre a sua missão, pois Ele veio para todos e para caminhar com todos, até ao fim dos tempos. Jesus enviou-a como seu prolongamento: “assim como o Pai Me enviou, assim também Eu vos envio a vós” (Jo 20,21). “Quem vos ouve, a Mim ouve; e quem vos rejeita, a Mim rejeita; mas quem Me rejeita, rejeita Aquele que Me enviou” (Lc 10,16). “Ide, pois, fazei discípulos de todas as nações, batizando-as em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a observar tudo quanto vos mandei. E eis que Eu estou convosco todos os dias, até ao fim do mundo” (Mt 28,19-20).  Enviou-os a pregar, “não as suas próprias pessoas ou as suas ideias pessoais, mas sim um Evangelho do qual ela é depositária. Nem eles nem ela são senhores e proprietários absolutos, para dele disporem a seu bel-prazer. São ministros para o transmitir com a máxima fidelidade” (EN15).

A Encarnação, a Missão e o Mistério Pascal de Cristo não são acontecimentos do passado, dominam todos os tempos. A Eucaristia faz a Igreja, é o memorial do Mistério Pascal de Cristo, o seu hoje, a atualização e oferecimento sacramental do seu único sacrifício, a proclamação das maravilhas que Deus fez por amor dos homens, atraindo-os para Cristo, a verdadeira Vida. Jesus só voltou para o Pai depois de nos ter deixado forma de podermos participar na sua Páscoa, ao longo dos tempos. Embora precedida pela evangelização, pela fé e pela conversão, fazemo-lo em Igreja, sobretudo através da Liturgia. Os sacramentos são «como forças que saem do Corpo de Cristo”, são “a obra-prima de Deus, na nova e eterna aliança”, estão ordenados à santificação das pessoas e à edificação do Corpo de Cristo, a Igreja. Supõem a fé, sim, mas também a alimentam, a fortificam, a exprimem.

Antonino Dias

Portalegre-Castelo Branco, 22-09-2023.

 

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