“Senhor, quero aproximar-me de ti, mas por muito que me faça o último, eu serei sempre o penúltimo, pois Tu ocupaste o último lugar. A Tua vida foi sempre um descer, descer, descer, porque Tu és amor e o amor quer dar, o amor é humilde, o amor é pobre”.

A noite fora longa, escura, fria.
Ai noites de Natal que dáveis luz,
Que sombra dessa luz nos alumia?
Vim a mim dum mau sono, e disse: «Meu Jesus…»
Sem bem saber, sequer, porque o dizia.

E o Anjo do Senhor: «Ave, Maria!»

Na cama em que jazia,
De joelhos me pus
E as mãos erguia.
Comigo repetia: «Meu Jesus…»
Que então me recordei do santo dia.

E o Anjo do Senhor: «Ave, Maria!»

Ai dias de Natal a transbordar de luz,
Onde a vossa alegria?
Todo o dia eu gemia: «Meu Jesus…»
E a tarde descaiu, lenta e sombria.

E o Anjo do Senhor: «Ave, Maria!»

De novo a noite, longa, escura, fria,
Sobre a terra caiu, como um capuz
Que a engolia.
Deitando-me de novo, eu disse: «Meu Jesus…»

E assim, mais uma vez, Jesus nascia.

 

Começo esta reflexão com a Litania do Natal de José Régio que viveu a sua vida numa tentativa constante de ascensão até ao absoluto embora de forma sempre insatisfeita. Que o digam os “Amigos de Régio” que, aqui em Portalegre, celebram os oitenta anos da sua chegada a esta cidade.

Neste poema, além de outras dimensões que nos podem levar a reflectir, refere-se ele, num contexto interior que lhe era peculiar, à luz que transborda do Natal.

É essa luz que permeia toda a liturgia desta Celebração. É a irrupção da luz divina no mundo cheio de escuridão e frio.

“Deus é Luz e nele não há trevas”, diz S. João (I Jo 1,5).

A luz é fonte de vida. Deixa-nos ver e conhecer. Indica-nos a estrada. Gera calor e, por isso, a luz significa também amor. Onde há amor, há luz. Onde há ódio, há escuridão.

Em Belém, apareceu a grande luz que o mundo esperava. Naquele menino, Deus mostra a sua glória – a glória do amor, em que Ele mesmo se entrega em dom e se despoja de toda a grandeza para nos conduzir pelo caminho do amor. O Menino nasce na pobreza de um curral: este é o sinal de Deus. Passam os anos, os séculos e os milénios, mas o sinal permanece e vale também para nós. Ele é sinal de esperança para toda a família humana. É sinal de paz para todos quantos vivem mergulhados em conflitos e guerras, em caprichos e amuos que não dão nem pedem explicações, tantas vezes na intimidade das próprias famílias. É sinal de libertação para os pobres e oprimidos, para os desempregados e excluídos. E que tantos!… É sinal de misericórdia para quem se instala no pecado, na auto-suficiência e sobranceria que corrompe e destrói. É sinal de amor e de consolação para quem se sente só e abandonado, sem família nem amigos, sem vizinhos nem próximos. É sinal pequeno e frágil, humilde e silencioso, mas rico do poder de Deus que, por amor, se fez homem.

Nasceu e viveu pobre. Quis tornar-se o último para nos apontar o caminho.

Charles de Foucauld rezava assim: “Senhor, quero aproximar-me de ti, mas por muito que me faça o último, eu serei sempre o penúltimo, pois Tu ocupaste o último lugar. A Tua vida foi sempre um descer, descer, descer, porque Tu és amor e o amor quer dar, o amor é humilde, o amor é pobre”.

Frente à grandeza do mistério de Cristo, Napoleão de Bonaparte escreveu um dia, no seu exílio em Santa Helena: “Eu conheço os homens e, por isso, digo-vos que Jesus não é um homem. Os espíritos superficiais encontram uma certa semelhança entre Ele e os fundadores de impérios, os conquistadores e os deuses de outras religiões, mas essa semelhança não existe. Entre o cristianismo e qualquer outra religião há a diferença do infinito: Cristo é único (…). Quem é o morto capaz de conquistar a terra com um exército devoto e fiel à sua memória? Quem pode contar os seus soldados sem soldo, sem desejos de glória terrena, votados unicamente a toda a renúncia?

E, por fim, digo que não existiria um Deus nos Céus, se um simples mortal pudesse conceber e realizar o gigantesco desígnio de se arrogar o culto supremo, usurpando o nome de Deus.

O único que jamais ousou afirmar categoricamente “Eu sou Deus” (que é muito diferente de dizer: “Eu sou um deus”) foi apenas Jesus: a história não recorda nenhum outro indivíduo que tenha atribuído a si próprio este título com o seu significado preciso… De que modo este judeu, este filho de um carpinteiro, conseguiu que acreditassem nele como Deus, como o Ser por excelência, o Criador do Céu e da Terra, e ser adorado e edificar um templo, construído não com pedras, mas no coração dos homens, com um prodígio que ultrapassa todos os outros prodígios?”.

Façamos silêncio. Fixemos o nosso olhar e pensamento no Menino, em Maria e José. Escutemos a bela leitura do Natal que Jean-Paul Sartre, filósofo francês, escritor e crítico ateu e conhecido representante do existencialismo fez quando estava preso num campo de concentração, em Treviri. Ao reflectir sobre este acontecimento ímpar e ao olhar para Maria e José, como que dá conselhos aos possíveis pintores da cena e a si próprio se fosse pintor. Escreveu ele:

“Aquilo que deveriam pintar no rosto de Maria é aquele assombro cheio de expectativa que uma única vez se estampou no rosto de um ser humano. De facto, Cristo é o seu filho, carne da sua carne e fruto do seu ventre. Trouxe-o nove meses dentro de si, amamentá-lo-á e o seu leite tornar-se-á sangue de Deus. Em certos momentos, a tentação é tão forte que nos esquecemos que ele é Deus. Aperta-o entre os braços e diz: meu pequenino! Noutros momentos, porém, fica interdita e pensa: Deus está aqui! Então sente-se dominada por um horror religioso frente a esse Deus mudo, a esse Menino aterrador. Na verdade, em certos momentos, todas as mães ficam completamente petrificadas frente a esse fragmento rebelde da sua própria carne que é o seu filho, e sentem-se no exílio, frente a essa nova vida que foi feita com a sua própria vida e que provoca nelas uma imensidão de pensamentos estranhos. Contudo, nenhum filho foi tão cruel e tão rapidamente arrancado à sua mãe, pois Ele é Deus, ultrapassando tudo aquilo que ela possa imaginar. E é uma dura prova para uma mãe ter vergonha de si própria e da sua condição humana frente ao seu filho. No entanto, penso que também há outros momentos, fugazes e duros, em que sente que Cristo é o seu filho, é o seu pequenino, e ao mesmo tempo é Deus. Olha para Ele e pensa: “Este Deus é meu filho. Esta carne divina é minha carne. É feita de mim, tem os meus olhos, e a forma da sua boca é igual à minha. Parece-se comigo. É Deus e parece-se comigo.” E nenhuma mulher teve assim o seu Deus só para si. Um Deus pequenino, que se pode tomar nos braços e cobrir de beijos, um Deus afectuoso, que sorri e respira, um Deus que se pode tocar e está vivo. E seria nesses momentos que eu, se fosse pintor, pintaria Maria, tentando dar vida à expressão de terna audácia e timidez com que ela estende o dedo para tocar na pele macia deste Deus Menino, cujo peso tépido sente sobre os joelhos, e que lhe sorri. E é tudo sobre Jesus e Maria”.

“E José? A José, não o pintaria. Mostraria apenas uma sombra ao fundo do presépio e dois olhos brilhantes. Na verdade, não sei que dizer acerca de José, e José também não sabe que dizer acerca de si próprio. Adora e sente-se feliz por adorar, sentindo-se um pouco no exílio. Creio que sofre, embora não o confesse. Sofre ao ver como a mulher que ele ama se parece com Deus, como ela já está perto de Deus. Na verdade, Deus deflagrou como uma bomba na intimidade desta família. José e Maria são separados para sempre por este incêndio de luz. E imagino que toda a vida de José será para aprender a aceitar.”

Como são belas estas palavras …. de um ateu! Como é profunda a leitura do Natal… feita por Jean Paul Sartre, comenta Ângelo Comastri ao terminar esta citação no seu livro sobre o Natal.

E nós? Que Natal é o nosso? Os que estão de fora da Igreja em busca da Verdade olham-nos com atenção. Curzio Malaperte, escritor contundente e que morreu em 1957, ano em que foi baptizado e um mês depois morreu reconciliado com a fé e com Cristo, escreveu uma “página violentíssima sobre o Natal”. É uma página “que denota nervosismo, inquietação e ressentimento; contudo, faz-nos entender como é difícil viver cristãmente e compreender o Natal de forma igualmente cristã. Escreve Cruzio Malaparte: “Dentro de poucos dias é Natal e os homens já começam a preparar-se para a suprema hipocrisia. Por que razão nenhum de nós tem a coragem de dizer que o século, o mundo, nunca foi tão pouco cristão como na época actual? Por que é que nenhum de nós se atreve a reconhecer que a grandiloquência dos homens políticos, a grande parada dos sentimentos evangélicos, as procissões dos falsos devotos, servem apenas para ocultar esta terrível verdade: que os homens já não são cristãos, que Cristo morreu na alma dos seus filhos, que a hipocrisia desceu da política para a vida social, familiar e individual. Não nos importa nada quem sofre; não fazemos nada para impedir o sofrimento, a miséria, o mal, os delitos, a violência, as matanças; ficamos quietos e calados, festejando o Santo Natal.” E acrescenta: “Gostava que no dia de Natal o panettone se tornasse carne sofredora sob a nossa faca e o vinho se transformasse em sangue, e todos nós sentíssemos, por um instante, o horror do mundo na boca. Gostava que, no dia de Natal, as nossas crianças nos aparecessem de repente como serão amanhã, dentro de alguns anos, se não ousarmos rebelar-nos contra o mal que nos ameaça: pobres corpos dilacerados, abandonados na lama ensanguentada de um campo de batalha. Gostaria que na noite de Natal, em todas as igrejas do mundo, um pobre sacerdote se erguesse, gritando: fora deste berço, hipócritas, embusteiros! Ide para casa, chorar sobre o berço dos vossos filhos. Se o mundo sofre, a culpa também é vossa, que não ousais defender a justiça e a bondade e tendes medo de ser cristãos de forma radical. Fora deste berço, hipócritas. Este Menino, que nasceu para salvar o mundo, tem horror de vós”.

São palavras dramáticas de quem procura a verdade através do estudo e reflexão, com certeza, mas também através do exemplo de quem acredita.

Corre por aí um outro texto de um autor anónimo que nos fala fundo pela maneira como ele também vê o Natal de muita gente. Gente crente e cristã, possivelmente.

Gostaria que também este não fosse o nosso Natal. Creio mesmo que não é!

Colocando o Menino Deus a falar diz ele:

“Vós festejais a minha chegada à terra e, contudo, procurais expulsar-me da terra. Festejais o facto de Eu ter vindo salvar-vos mas, no fundo, não tendes a intenção de ser salvos. Fazeis festa porque, quando eu nasci, os Anjos anunciaram a paz, mas, até hoje, só pensais em fazer a guerra.

Em meu nome gritais: Paz! Paz! Mas, quando não fazeis guerra, fazeis com que os outros a façam. Fazeis festa nas vossas casas porque dizeis que o Natal é a Festa da Família, mas, entretanto, quase destruís a família. Fazeis festa porque Deus nasceu como homem no meio de vós, mas, entre vós não nasce Deus e cada vez é mais raro o nascimento de um homem. Fazeis festa junto ao presépio onde eu estou deitado no feno, mas as vossas casas transbordam de todos os bens. Muitos acorrem às estâncias de Inverno enquanto Eu estou no caminho, exposto a todos os males. Não quero perturbar as vossas festas nem a vossa consciência: convido-vos apenas a reconhecer que esta é a vossa festa, e não a minha”.

Celebrar o Natal é celebrar o amor, a solidariedade e a caridade de Deus para connosco. É celebrar o amor, a solidariedade e a caridade de uns para com os outros. É celebrar a fraternidade, sentindo-nos verdadeiramente família, vizinhos, próximos e irmãos.

No entanto, sem querer ser masoquista, quão longe estaremos nós duma verdadeira celebração do Natal! Falta muito para que seja Natal e Natal todos os dias para toda a gente. Sim, falta. Falta muito em nós e noutros.

Dentro do espírito de testemunhos que quis imprimir a esta homilia, escutemos em nome de todos aqueles que sofrem, dores morais ou físicas na multiplicidade das suas causas, a experiência desta mãe:

 “Sou uma pessoa completamente vulgar e não sei se vão tomar em consideração esta minha carta. Em breve, porém, será Natal. Para muitos será um dia de alegria, para outros um dia sempre igual: assim será para as pessoas que vivem nos lares ou para as mães que vivem sozinhas em casas vazias, sem calor humano, à espera dos filhos que não vêm, que não virão, que nunca mais virão …Devo reconhecer, como mãe, que hoje, no mundo, há muita indiferença: a sociedade preocupa-se com muitas coisas, até com os cães abandonados, mas não com as mães”[1].

É evidente que no desabafo desta mãe não está o desprezo pelos animais ou pela criação. Está o sentimento de abandono a que se sente devotada. Este testemunho é uma simples amostra do muitos que tantos poderiam contar.

Noticiavam por estes dias os meios de comunicação social que aumentam todos os dias aquelas pessoas que entram nas urgências dos hospitais com problemas associados à idade ou situações crónicas agudizadas e que, após alta clínica, ninguém os reclama. E como se isto não bastasse, os familiares que nem sequer os visitam, desviam-lhes as pensões de reforma. Em alguns casos, diziam os médicos, ganham depressões por terem o discernimento suficiente para entenderem que foram abandonados. Não é que falem do abandono. Sentem-se envergonhados e cultivam o silêncio em redor deste assunto.

Somos cristãos. Anunciemos com alegria este Menino, o seu exemplo e Mensagem para que seja Natal em cada dia do ano e em todas as circunstâncias, para cada pessoa, para cada família, para todos os povos e nações. Que todos possam abrir o seu coração a Cristo Redentor e cantar em uníssono: “Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens por Ele amados”.

Feliz Natal para todos!

+Antonino Dias

Bispo de Portalegre-Castelo Branco

 

 

 

 


[1] As várias citações que aparecem neste texto encontram-se no livro “Prepara o berço: É NATAL!”, de Ângelo Comastri, Ed. Paulinas, Novembro de 2006.

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