Ao longo da história, sempre existiram pessoas a despertar e a manter viva a consciência coletiva. Atentas aos sinais dos tempos, sem preconceitos, sabem apreciar e interpretar os fenómenos sociais e os seus impactos no futuro. Por isso, sem subserviências e com olhos de ver, tornam-se críticos mordazes do poder e da governança e nada moles na forma de o fazer. Procuram sacudir, fazer acordar, forçar a inversão das coisas. Não são pessoas frustradas ou de mal com a vida, são profetas, e basta!… Por isso, embora sejam indispensáveis no desenrolar da História, não raro, tornam-se antipáticos, fazem aquecer os fusíveis dos dormentes e instalados nas suas seguranças, ao ponto de serem fortemente admoestados, silenciados, perseguidos, presos… Vivem convictos de que o poder não pertence à essência da humanidade. Mesmo que constituídas em autoridade, as pessoas são relativas, e quem o tem, exerce um poder delegado e em função do bem comum. Exerce-o não só para cuidar da prosperidade económica e do bem estar social, mas também para que a pessoa se realize em plenitude. E a pessoa aspira à imortalidade, tem dentro de si ambições de infinito, parece-lhe impossível que para lá do horizonte da História e da complexidade majestosa e bela do universo, não haja algo que corresponda a esta sua ânsia interior de sobrevivência e sentido. Para nós, os crentes, a história caminha, de facto, em direção aos Novos Céus e à Nova Terra (cf. Ap 21,1). Em direção a uma realidade que nem os olhos viram, nem os ouvidos escutaram, nem qualquer mente humana, por mais  sagaz que seja, pode sequer imaginar! (cf. 1Cor 2,9).

O sentido último da existência de qualquer autoridade é servir, rasgando horizontes de alegria e de verdadeira esperança. Não se trata de querer teocracias ou regimes sagrados. Tampouco se trata de querer ferir a justa autonomia das realidades terrenas ou de querer que todos pensem e digam a mesma coisa ou governem de igual forma. Trata-se de um exercício do poder que seja capaz de promover o bem comum de forma verdadeiramente solidária e fraterna, na justiça e na paz. Que faça convergir as energias de todos os cidadãos no bom uso da sua liberdade e na consciência do próprio dever e sentido de responsabilidade. Esta missão de congregar e conduzir o povo à alegria de viver com esperança, se reclama competência, também exige humildade e respeito por todos, tendo presente que todas as formas de absolutismo significam retrocesso e fiasco. Quando se tem consciência do exercício do poder como responsabilidade delegada e se age em conformidade, todos, crentes e não crentes, poderemos ir petiscando, desde já, um pouquinho dessa vida que nós, os crentes, esperamos viver em plenitude nos Novos Céus e na Nova Terra, onde também esperamos ver, com grande júbilo e satisfação, os Tomés de hoje, emocionalmente deslumbrados e a confessar: “Meu Senhor e meu Deus!” (Jo 20, 28).

Tudo isto vem a propósito do profeta Elias e da sua ação. Outrora, o grande império do rei Salomão, por razões da fragilidade humana, dividira-se em dois reinos. Cada um sem qualquer projeção política e ambos sempre mal servidos. O profeta Elias constata o mal estar do povo e confronta-se com os desmandos governativos do rei Acab. Acab tinha-se casado com uma princesa fenícia que logo arrasta consigo os costumes e a religião dos fenícios, onde o deus Baal era considerado o senhor da fertilidade e da vida. No entanto, em vez da vida que o povo esperava, o país, para além da incompetência governativa, sofre uma terrível seca e, consequentemente, a ruina do povo. Elias mostra que se a situação se deve à débil governança sem justiça e sem direito, também se deve ao facto de terem voltado as costas ao Deus da Aliança. Surge assim um forte quiproquó entre Elias e o rei Acab e os profetas de Baal subservientes ao poder do rei. Elias desmascara os deuses falsos e aqueles que os servem. Esforça-se por levar o povo à redescoberta da verdade e a fazer com que ele escolha, de novo, o Deus que dá a vida e não os ídolos que provocam a morte. O rei Acab não gostou da festa, saiu ao encon­tro de Elias considerando-o a ruína de Israel e com vontade de lhe cortar o pescoço. Elias, porém, responde que «Não, eu não sou a ruína de Israel. Pelo con­trá­rio, tu e a casa de teu pai é que o sois, por terdes abandonado os pre­ceitos do Senhor”.  Empoleirados nas suas certezas, travam-se de razões e fazem uma aposta para fazer valer cada um a sua razão e a sua força. Assim, o rei Acab convocou a sua malta e todos os profe­tas de Baal e de Achera, centenas deles. Elias, o único profeta do Senhor que ainda restava, aproximou-se deles e chama-os a atenção pelo facto de viverem na indecisão, com um pé dentro e outro fora: “Até quando coxeareis com as duas pernas? Se Javé é o Deus verdadeiro, segui a Javé. Se é Baal, segui a Baal!» O povo não respon­deu a esta tirada de Elias, não sabia o que responder. Então, Elias coloca sobre a mesa os dados da aposta, um momento com certo humor que até podemos imaginar e espreitar da nossa janela. Elias pediu dois novilhos para que eles escolhessem um, o preparassem e colocassem sobre a lenha, mas sem lhe chegar fogo. Elias ficaria com o outro, prepará-lo-ia e colocá-lo-ia sobre a lenha, também sem lhe chegar fogo. Invocariam então, cada um o seu Deus e aquele que respondesse enviando o fogo para consumir a vítima seria reconhecido como o único Deus verdadeiro. Todos acharam muito bem. Com certeza que apertaram a mão ou trocaram outro gesto habitual a selar a aposta. E lá chegou a hora do ajuste de contas. As centenas de profetas de Baal, ligados ao rei Acab, depois de terem preparado as coisas, foram os primeiros a invocar o seu deus, Baal. Invocaram-no “desde manhã até ao meio-dia, gritando: «Baal, escuta-nos!» Mas nenhuma voz se ouviu, nem houve quem respon­desse. E dan­­­çavam à volta do altar que tinham levantado. Quando era já meio-dia, Elias começou a escar­ne­­cer deles, dizendo: «Gritai com mais força! Talvez esse deus esteja entre­tido com alguma conversa! Ou então estará ocupado, ou anda de viagem. Talvez esteja a dormir! É preciso acordá-lo!» Então eles gri­ta­vam em voz alta, feriam-se, se­gun­do o seu cos­tume, com espadas e lanças, até ficarem cobertos de sangue. Pas­sado o meio-dia, conti­nuaram enfureci­dos, até à hora em que era habitual fazer-se a oblação. Mas não se ouviu res­posta nem qualquer sinal de atenção”.

Chegou então a vez de Elias invocar o seu Deus. Todo o povo se aproximou dele enquanto ele preparava as coisas. Erigiu um altar ao nome do Senhor e cavou um sulco em volta do altar. Dispôs a le­nha e colo­cou o novinho já esquar­te­jado e pronto sobre ela, e disse-lhes: «Enchei quatro talhas de água e derramai-a sobre o holo­causto e sobre a lenha.» Depois acres­centou: «Tornai a fazer o mes­mo.» Tendo eles repetido o gesto, acres­centou: «Fazei-o pela terceira vez.» Eles obede­ceram. A água correu à volta do altar até o sulco ficar com­pleta­mente cheio. À hora do sacri­fício, o profeta Elias aproxi­mou-se, di­zendo: «Se­nhor, Deus de Abraão, de Isaac e de Israel, mostra hoje que és Tu o Deus em Israel, que eu sou o teu servo; às tuas ordens é que eu fiz tudo isto. Res­ponde-me, Se­nhor, responde-me! Que este povo reco­nheça que Tu, Senhor, é que és Deus, aquele que lhes converte os corações.» De repente, o fogo do Senhor caiu do céu e consumiu o holocausto, a lenha, as pedras, a lama e até mesmo a própria água do sulco. Ao ver isto, o povo prostrou-se de rosto por terra, exclamando: «O Se­nhor é que é Deus! O Senhor é que é Deus!» (1Reis 18).

Perante tantos deuses que o mundo de hoje nos oferece e entroniza, é bom que não nos deixemos coxear com as duas pernas, que não andemos também nós com um pé dentro e outro fora…

 

Antonino Dias

Portalegre-Castelo Branco, 30-08-2019

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