A 7 de setembro de 1822 ter-se-á dado o Grito do Ipiranga, aquele grito que o imaginário de artistas e insubmissos a Lisboa ajudaram a pintar e a tornar épico para as gerações futuras. A todos os pulmões, para se fazer ouvir em todo o Portugal e arredores, D. Pedro terá gritado nas margens desse riacho: “Independência ou morte!”. Acreditamos que, mesmo adoentado, como dizem, acreditamos que ele estivesse muito mais entusiasmado com os caminhos que acabava de rasgar do que preocupado com os seus irritantes movimentos peristálticos ou com quem, naquela hora, lhe quisesse limpar o sebo. A hora era nervosa e difícil, mas cheia de coragem e de esperança!

Ao iniciarmos um novo ano pastoral, também nós, todos nós, poderemos assumir como uma espécie de grito do Ipiranga a afirmação do incansável São Paulo: “Desperta, tu que dormes. Levanta-te dentre os mortos e Cristo brilhará sobre ti” (Ef 5,14). Não esqueças: o mundo precisa de esperança, precisa de Deus. E Deus quis precisar de ti para o dar a conhecer, quis precisar de nós.

Muito desejamos que, após algum tempo de descanso, todos tenham recuperado as forças do corpo e do espírito. Que todos tenham fortalecido a coragem para reagir àquela sub-reptícia letargia que as dificuldades e os adamastores, possíveis e inventados, possam causar quando se pensa em descascar um novo ano pastoral! É desejável, porém, que ninguém inicie seja o que for sem primeiro parar e pensar a perguntar-se como é que vai ser, com que consciência da presença e ação do Divino Espírito Santo, com que conteúdos, com que jeito e criatividade, com que espírito de comunhão local, arciprestal e diocesano, alijando esquemas isolados e já gastos, incapazes de gerar entusiasmo e de comprometer seja quem for e no que for. Quando escutadas, as comunidades cristãs são criativas sobre as respostas a dar às perguntas e necessidades que sentem. Sabem apreciar os líderes que naturalmente se vão impondo pela sua maneira de ser, estar e saber fazer. Regra geral, os líderes não se impõem de cima para baixo. São pessoas discretas que se vão manifestando a si próprias e se tornam bem aceites, acabando por adquirir aquela autoridade que gera empatia e seguidores, servindo, dando as mãos, estimulando, congregando e caminhando conjuntamente. As comunidades cristãs precisam de pensar a sua pastoral, envolvendo o maior número de pessoas na sua programação e execução, em saudável clima de sinodalidade, de amor à Igreja, de respeito e colaboração mútua, em comunhão. Se é verdade que, “por mandato divino, incumbe à Igreja o dever de ir por todo o mundo e pregar o Evangelho a toda a criatura (DH13), não é menos certo que “toda a Igreja é missionária, a obra de evangelização é um dever fundamental do Povo de Deus” (AG35).

“Levanta-te – disse Jesus ao doente –, toma a tua cama e anda” (Jo 5, 1-18). Como sabemos, a história não acaba aí. Não foi um desafio que Jesus fez ao homem para que se levantasse e levasse a cama atrás de si, sei lá se com a vontade de atribuir o prémio nobel ao seu inventor pelo conforto que sempre e em qualquer parte lhe iria dar! É de crer que o pobre homem partiu mas foi com a vontade firme de, na primeira oportunidade, a deitar ribanceira abaixo, tão cheio que estava de nela estar preso ao longo de trinta e oito anos. Imaginem: trinta e oito anos na borda da piscina, junto a uma das portas da cidade de Jerusalém – a porta das ovelhas por ser por lá que entravam os animas destinados aos sacrifícios no Templo -, e, nesses trinta e oito anos, não houve uma alma caridosa, um inimigo mesmo, um traste qualquer, que fosse capaz de lhe dar um empurrãozinho para a água, ele estava mesmo na berma. E que tantos continuam nessa situação, à espera de alguém que os ajude a mergulhar na água-viva, a saltar para uma nova vida, uma vida que liberte e salve, uma vida que esteja acima de leis e de opiniões que oprimem, sim, mas também de fragilidades morais e espirituais, que escravizam e corroem! Este doente é figura do povo tantas vezes paralisado à espera que alguém o ajude a libertar-se de amarras sem sentido. Jesus veio ao encontro desse homem, olhou-o olhos nos olhos e ordenou que ele próprio se levantasse e caminhasse, encontrando a sua liberdade e a alegria de viver: “No mesmo instante, o homem ficou curado, tomou a sua cama e começou a andar” … Parece até que ficou meio zaranza com o que lhe aconteceu. Não reconheceu quem o curou nem se preocupou em saber, coisa que até lhe deu jeito para dizer às autoridades judaicas que não tinha culpa por estar curado e levar a cama às costas em dia de sábado! Jesus, mais tarde, foi de novo ao seu encontro, no Templo. Se antes não podia entrar no Templo, a cuja porta permaneceu várias dezenas de anos, Jesus apresenta-se-lhe como a Porta que lhe dá acesso, e ele logo vai denunciar aos judeus que fora Jesus quem o curara, começando a perseguição a Jesus. Fraco gesto de gratidão!… Como tantos ainda hoje!

“Desperta, tu que dormes. Levanta-te dentre os mortos e Cristo brilhará sobre ti”.

Lemos na Evangelii Nuntiandi de Paulo VI: “ao lado da proclamação geral para todos do Evangelho, uma outra forma da sua transmissão, de pessoa a pessoa, continua a ser válida e importante. O mesmo Senhor a pôs em prática muitas vezes, por exemplo as conversas com Nicodemos, com Zaqueu, com a Samaritana, com Simão, o fariseu, e com outros, atestam-no bem, assim como os apóstolos. E vistas bem as coisas, haveria uma outra forma melhor de transmitir o Evangelho, para além da que consiste em comunicar a outrem a sua própria experiência de fé? Importaria, pois, que a urgência de anunciar a Boa Nova às multidões de homens, nunca fizesse esquecer esta forma de anúncio, pela qual a consciência pessoal de um homem é atingida, tocada por uma palavra realmente extraordinária que ele recebe de outro. Nós não poderíamos dizer nunca e enaltecer bastante todo o bem que fazem os sacerdotes que, através do sacramento da Penitência ou através do diálogo pastoral, se demonstram dispostos a orientar as pessoas pelas sendas do Evangelho, a ajudá-las a firmarem-se nos seus esforços, a auxiliá-las a reerguer-se se porventura caíram, enfim, a assisti-las continuamente, com discernimento e com disponibilidade” (EN46).

“Desperta, tu que dormes. Levanta-te dentre os mortos e Cristo brilhará sobre ti”.

Antonino Dias

Portalegre-Castelo Branco, 08-09-2023.

 

 

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