03-05-2019

O Dia da Mãe vem primeiro, o da Europa logo depois. Mesmo que elas não topem piada e se ponham no sério a olhar o rolo da massa ou o cabo da vassoura, vou-me meter com elas. Aquela que é mãe, é mãe, está tudo dito; a outra, a Europa, luta por ser mãe, mas, pelo que somos capazes de enxergar, a coisa não lhe está nada fácil. A mãe existe desde que o mundo é mundo e sem qualquer dúvida quanto à sua espécie e natureza; a Europa, esta de que falamos, nasceu no século passado, mas tem muitas dúvidas sobre si própria. É verdade que a mãe também anda por aí muito apreensiva, com os olhos arregalados e a mão na boca. Gente de estranhos saberes propala que a mulher nunca nasceu nem nasce mulher, é uma construção social, é fruto duma escolha posterior, tal como o homem. A própria maternidade, como especificidade feminina, é uma opressão, é uma discriminação injusta, dizem tais colonizadores edeológicos; a Europa, coitada, sem qualquer dessas veleidades, nasceu feminina, não teve direito a escolha. É verdade que não sabemos bem o que ela é. Também não sabemos bem o que deseja ser. As perspetivas são tantas que depende dos gostos de quem a olha e dela fala: é uma questão de amores, é cultura das elites! A mãe, mesmo que tenha uma só casa e sem grandes condições, está sempre de portas abertas para receber os seus filhos. Fica feliz e cheia de alegria sempre que isso acontece e os netos gritam e saltitam por todos os cantos, ainda que, com pena, mas a todos por igual, só tenha sopa para lhes dar; a Europa marca dias para receber, em seus palácios, alguns dos seus filhos, sobretudo os de gravata. A mãe não precisa de se fazer valer. Por isso, quando acolhe os seus filhos, não lhes faz discursos nem quer que lhos façam, não os faz participar em debates insonsos, nem lhes faz visitas guiadas e enfadonhas à casa, nem lhes organiza atividades para os entreter enquanto estão, até porque o tempo parece sempre pouco para estar com eles, e vice-versa; a Europa, essa sim, os visitantes são convidados a participar em debates solenes, em visitas guiadas, e, por esse mundo fora, organizam-se atividades para provar quanto ela vale, quanto ela é importante, quanto é necessário que ela seja amada, porque, embora pareça, não é madrasta, convém que se saiba! A mãe, acolhe e faz tudo, discreta e abnegadamente, para que os seus filhos sejam felizes, alegres e brincalhões, cresçam escorreitos, gozem de saúde, se acolham mutuamente, se estimem e respeitem; a Europa, mesmo que diga que não, é mãe seletiva, faz aceção de pessoas, tem ressaibos racistas e xenófobos, deixa crescer as desigualdades entre os filhos: a uns dá sopas e deixa-os a viver na rua, a outros eleva-os a salários, castelos e reformas doiradas. A mãe educa para a paz, para a fé, para a liberdade, para os valores, o dialogo, o perdão, o trabalho, e sempre com alegria, com atenção aos mais frágeis, com empenho e dedicação desinteressada; a Europa, que nasceu com vocação de carvão e aço para ser, de facto, construtora da paz e da unidade entre todos, porque mandou às malvas a educação que os pais lhe deram e acha retrogrado apostar nessas coisas, está-se a esfrangalhar em saídas, não em saídas por amor às preferias, mas por egoísmos de quem pensa que ainda manda no mundo e pode exigir o sol na eira e a chuva no nabal. A mãe, mesmo que já cansada, não faz eleições lá em casa para saber quem é que passa agora a mandar e porquanto tempo o fará, não há propaganda eleitoral, há uma espécie de atenção continua e discreta de toda a comunidade familiar para que todos se amem e vivam bem e a nenhum falte o essencial para viver feliz e honestamente; em casa da mãe Europa todos querem mandar. No entanto, dado que nem todos o podem fazer, escolhem-se alguns dos que se apresentam como os melhores para tal desempenho, para que mandem, nem que seja mal. Por isso, os que se consideram mais dignos e capazes para tais andanças e ordenanças, já andam por aí, pelas ruas, a querer convencer sobre o que lá vão mandar, a fazer ouvir o pouco que dizem sem dizer nada, não sabendo nós, mesmo assim, se aquele pouco que dizem é o muito que realmente pensam ou se apenas falam verdade quando dizem mal uns dos outros! A vontade de se juntarem àqueles que por lá já riscam e desarriscam, àqueles que já sabem quem deve tanto, quem empresta o quê, quem paga a quem, quem é o próximo a cair no lixo e quem é o mártir das dores ciáticas, tudo, tudo isso a tudo obriga e faz com que todos andem animados. Ainda bem, aplaudimos e gostamos que assim seja! À mãe, neste dia, oferecemos uma linda flor ou uma prenda, ou, se já faleceu, rezamos por ela, agradecidos e com saudade; à mãe Europa vamos oferecer-lhe o voto, sim, é a única forma de podermos participar na sua alegria ou na sua tristeza, depende dos olhares. Votar é um dever, mesmo quando o tiro sai pela culatra e nos atira pelo chão. Com uma oração e as melhores saudações para todas as mães, a todos deixo um poema de Filipa Leal sobre a Europa, um poema integrado no festival de Poesia de Berlim sob “Um diálogo europeu em versos”, e que li em Focussocial – Revista de Economia Social, de dezembro de 2016:

 

“A EUROPA

Apontas para o rosto sarcástico do sol de Inverno
E disparas. Há tantos meses que não chove – reparaste?
É o próprio céu a desistir de ti. E mesmo assim tu disparas, só sabes disparar.
Estás enganada, Europa. Envelheceste mal e perdeste a humildade.
Não é contra o sarcasmo que disparas, não é contra o Inverno,
Nem sequer contra o insólito, contra o desespero.
Tu disparas contra a luz.
Podes atirar-me tudo à cara, Europa: bombas, palavras, relatório de contas.
Podes até atirar-nos à cara um deputado, uma cimeira.
Mas os teus filhos não querem gravatas. Os teus filhos querem paz.
Os teus filhos não querem que lhes dês a sopa. Os teus filhos querem trabalhar.
Há tantos meses que não chove – reparaste?
A terra está seca. Nem abraçados à terra conseguimos dormir.
Enquanto te escrevo, tu continuas a fazer contas, Europa.
Quem deve. Quem empresta. Quem paga.
Mas os teus filhos têm fome, têm sono. Os teus filhos têm medo do escuro.
Os teus filhos precisam que lhes cantes uma canção, que os vás adormecer.
Eu acreditei em ti e tu roubaste-me o futuro e o dos meus irmãos.
Se estamos calados, Europa, é apenas porque, contrários ao teu gesto,
Nós não queremos disparar.” (Filipa Leal)

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