Viviam-se tempos difíceis de tragar. Desde a segunda metade do século II, a unidade do império romano ia-se desmoronando. As províncias romanas fervilhavam com o sonho de emancipação e de melhor futuro. Roma já não fazia ecoar tanto o chocalho da sua autoridade e prepotência. E, se, por um lado, a angústia e o medo se apoderavam da população desprotegida, por outro lado, essa mesma população tornava-se cúmplice da invasão dos bárbaros. É sempre assim: ciclicamente, a história dos povos, mesmo que por entre alguns trambolhões, dá saltos mirabolantes em busca de novos trilhos e de espaço menos poluído para respirar e viver. Assim, com a decadência do império romano e a emergência dos povos bárbaros, vai surgindo um outro mundo. Nesse mundo, por volta do ano 480, nasce, na Umbria, em Núrcia, um cachopo a quem dão o nome de Bento. Crescendo escorreito e dotado de apreciável inteligência e vontade, parte para Roma para continuar estudos. O que por lá foi vendo e ouvindo deu-lhe volta às vísceras, foi demais. Desagradado com tal ambiente, resolve viajar pelos atribulados caminhos de si mesmo até ao mais profundo de si próprio. Primeiro, lá pelos montes de Sabina. Depois, mais difícil ainda, como eremita numa caverna de difícil acesso espetada nas montanhas de Subiaco. Descendo mais para o terreno, o seu zelo e rigor, porém, de tal forma fizeram aquecer os fusíveis de alguns dos seus seguidores que estes planearam amansá-lo com uns pozinhos mágicos perlimpimpim. Tendo percebido a tramoia e achando que era cedo para bater a bota, resolve cuidar-se para não lhes dar a alegria de o verem acordar morto, mas não desiste. A sua fama de santidade continua a atrair gente e a fazer discípulos. Ponderar sobre o sentido da vida, a sacralidade e os valores inalienáveis da pessoa humana, constituíram para ele a prioridade e o caminho a seguir. Aberto às intuições do Alto, nas ruínas de uma antiga acrópole pagã, onde havia um templo dedicado a Apolo, constrói a Abadia do Monte Cassino. Ao longo dos tempos, diversas vezes foi invadida, saqueada, queimada, destruída. A última vez que isso aconteceu foi em princípios de 1944, na segunda Guerra Mundial. Mas sempre foi reconstruída e deu à Igreja muitos bispos, alguns papas e muitíssimas pessoas do saber e do saber sonhar e fazer. A par, funda pequenas comunidades ou mosteiros, espalhados por montes e vales, dentro dos quais não havia distinção entre livres e escravos, nobres e plebeus. E se ele era o Abade de todos, cada mosteiro, autónomo na sua subsistência, também era presidido por um abade, um pai. Deveria ser uma comunidade ideal, evangélica, baseada na oração, no trabalho, na obediência, na pobreza, no amor fraterno e na hospitalidade. Este espírito e organização a implementar nos mosteiros estavam plasmados na “Regra” que Bento elaborou, onde também exortava os monges a ouvirem com o coração e a confiarem na misericórdia de Deus. E já que o ócio é mau conselheiro e inimigo da alma, também acentuava a necessidade do trabalho. Assim, este ideal da busca de Deus e do trabalho, aliado ao ideal da comunhão, da fraternidade e da ajuda recíproca, fez história, foi excelente instrumento de evangelização, renovou e transformou a sociedade, inspirou muitas comunidades e outra gente, a nível eclesial e civil. Passados mais de 1500 anos, a “Regra de São Bento” continua viva e atuante. Ao longo dos séculos, e por toda a Europa, os mosteiros beneditinos tornaram-se centros de irradiação do Evangelho, da cultura e da promoção social. Constituíram verdadeiras escolas onde se aprendia a ler, a escrever e a cultivar a terra. Criaram universidades e escolas de artes e ofícios, ergueram hospitais e outras instâncias de caridade e de apoio social, bem como bibliotecas para preservar, reproduzir e acolher obras do pensamento e da literatura. Em fidelidade à cruz, ao livro e ao arado, souberam integrar as culturas grega e romana bem como souberam dialogar com os bárbaros. Uniram povos diferentes entre si e tiveram um papel ímpar na unificação espiritual da Europa. Deram origem à cultura europeia alicerçada no primado de Deus e do trabalho, ajudaram a Igreja a ser fiel à sua missão atravessando os tempos e fazendo história em cada tempo, mesmo que também ela sujeita às fragilidades humanas. Se cometeu erros e pecados, se fez cedências e fraquejou com algumas subserviências, sempre manteve a sua identidade ao longo de dois mil anos de história. Cada tempo é cada tempo, tem as suas circunstâncias, as suas exigências e as possíveis formas de estar e sobreviver, nem sempre fáceis. Nenhum tempo se pode julgar com os olhos de outro tempo e de ânimo leve. Com certeza que, em cada tempo, a Igreja procurou exercer a sua missão, mesmo quando a pressão política, o ruído e a empatia do mundo não lhe permitiam ouvir convenientemente a voz do Espírito para agir como deveria.

Francisco, na visita ao Parlamento Europeu e ao Conselho da Europa, em novembro de 2014, afirmou que uma “história bimilenária liga a Europa e o cristianismo. Uma história não livre de conflitos e erros, e também de pecados, mas sempre animada pelo desejo de construir o bem. Vemo-lo na beleza das nossas cidades e, mais ainda, na beleza das múltiplas obras de caridade e de construção humana comum que constelam o Continente. Esta história ainda está, em grande parte, por escrever. Ela é o nosso presente e também o nosso futuro. É a nossa identidade. E a Europa tem uma necessidade imensa de redescobrir o seu rosto para crescer, segundo o espírito dos seus Pais fundadores, na paz e na concórdia, já que ela mesma não está ainda isenta dos conflitos”. Para Francisco, se se devem evitar “os purismos angélicos, os totalitarismos do relativo, os fundamentalismos a-históricos, os eticismos sem bondade, os intelectualismos sem sabedoria”, também se deve “abandonar a ideia de uma Europa temerosa e fechada sobre si mesma para suscitar e promover a Europa protagonista, portadora de ciência, de arte, de música, de valores humanos e também de fé. A Europa que contempla o céu e persegue ideais; a Europa que assiste, defende e tutela o homem; a Europa que caminha na terra segura e firme, precioso ponto de referência para toda a humanidade!”

Os fundadores da atual Comunidade Europeia eram cristãos convictos e assumidos, quer em família e na sociedade quer nos debates e nas leis quer na promoção do progresso dos povos e do bem comum. Um deles já está a caminho dos altares.

A nossa Assembleia da República tem a sede no Palácio de São Bento, assim chamado para conservar a memória dum mosteiro beneditino ali construído por volta de 1598 e tomado pelo Estado em 1834, com a extinção das ordens religiosas em Portugal. Que São Bento, primeiro unificador espiritual da Europa e seu Padroeiro, e cuja Festa celebramos por estes dias, interceda por esta Europa que tanto foge do que lhe falta e muito precisa: do Salvador, o maior revolucionário de todos os tempos que, com a potente arma do amor e a total doação de si mesmo aos outros, se apresentou como o Caminho, a Verdade e a Vida. A laicidade que sabe dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus dentro dessa saudável autonomia das realidades terrestres, não se confunde com o laicismo que se quer afirmar em contornos de religião laica, de “religião não-religiosa”. Erradicar Deus da vida pública ou pretender reduzi-lo à esfera subjetiva e pessoal, significa o desprezo pelo próprio homem, a negação da sua liberdade e da fraternidade universal. Se nos temos como irmãos e o somos, é porque temos um Pai comum que é Deus. Quando o homem abandona Deus com a pretensão de querer ocupar o seu lugar, o homem torna-se predador do outro homem. Infelizmente, as lições da história demonstram quanto isso é verdade!

Antonino Dias

Portalegre-Castelo Branco, 09-07-2021.

 

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