Foi em Santiago do Cacém, Diocese de Beja, que teve lugar a cerimónia de lançamento dos “Caminhos de Santiago Alentejo e Ribatejo”. O ato teve lugar na igreja matriz, junto ao castelo. Uma bela igreja, sofrida no tempo com o terramoto de 1755 e por mais dois incêndios, ela continua a desafiar os séculos. Tem três naves, elementos de gótico e barroco, painéis de azulejo, talha dourada e com o detrás para a frente. O que antigamente era a capela-mor com abóbada e cruzaria de ogivas, virou a coro alto e entrada principal da igreja, ao cimo de uma bela escadaria. O fundo da igreja permitiu rasgar uma nova capela-mor nos fins do século XVIII e no dealbar do XIX, junto da qual permaneceu a torre sineira. Se a orientação do templo foi invertida, não prejudicou a sua harmonia interna nem o seu espaço envolvente. Enriqueceu a beleza paisagística do local donde se avista a cidade aos pés, a longa planície, o porto de Sines e o mar. Santiago ainda por lá combate os mouros num interessante alto-relevo gótico do século XIV.

A sessão foi muito concorrida, solene e promissora. Teve a presença de responsáveis pela iniciativa e gente envolvida na área do turismo e do religioso, quer da Galiza quer de Portugal.

 Desde que colocou os pés neste vale de lágrimas, o homem, embora sentindo o nascimento como entrada e a morte como saída, sempre se teve como peregrino a percorrer os caminhos do tempo e do espaço, sobretudo até dentro de si próprio. Este peregrinar em direção ao seu interior é quase sempre o caminho mais difícil de percorrer, o mais longo e mais longínquo, há quem desista ou erre os azimutes!… Foi assim desde Adão e Eva que até entraram por atalhos solavancados, virando as costas ao verdadeiro trajeto. E assim foi acontecendo no peregrinar do povo e de cada indivíduo através da história. Ora se enganava e desviava, ora sentia a necessidade de se reencontrar no certo e essencial, removendo os equívocos do coração e ingressando na rota que o conduziria à meta pela justiça e fidelidade. Tal como outrora, também hoje isso acontece. E neste peregrinar, a eficácia foi e é tanto maior quanto mais se percebia e percebe que o próprio Senhor Se fez peregrino com cada um e a todos chama à comunhão na gratuidade e na misericórdia.

 Hoje existem muitos outros caminheiros à procura de “metas diferentes, através do turismo, da exploração científica e do comércio”, do desporto, etc. São fenómenos complexos que embora, aqui ou ali, possam ser “causa de injustiça, de exploração das pessoas, de erosão das culturas ou de devastação da natureza”, conservam “em si valores de pesquisa, de progresso e de promoção da mútua compreensão entre os povos, que merecem ser fomentados”. A informática e o virtual vão rasgando outras estradas para o peregrinar humano, com muitos riscos e deformações, é verdade, mas também com enormes e latentes virtualidades. Sim, todos os caminhos podem ser sublimes para quem, de coração sincero, procura o sentido da vida e das coisas: Deus serve-Se de tudo para Se fazer encontrado. Faz-nos tropeçar n’Ele, mas disfarçamos, sentimo-nos demasiadamente importantes e seguros nas nossas peneiras, não queremos dar sinais de tais fraquezas!…

 Quando Jesus entrou na história, a sua vida foi-se desenrolando pelos caminhos da Sua terra, constituindo uma verdadeira peregrinação em direção a Jerusalém, à meta da cruz e da glória pascal. A etapa definitiva, porém, teve lugar no dia da Ascensão, no dia da subida à plenitude da comunhão com Deus.

 À semelhança de Cristo, também a Igreja está em constante peregrinação. Ultrapassando o tempo e as fronteiras, ela anuncia a Palavra de Cristo para conduzir a todos em direção à cidade futura, em direção ao Reino, já presente e operante em todo o mundo. No desafio que Jesus nos fez e faz à perfeição, configura-se o perfil da verdadeira peregrinação. Ao longo dos tempos, este desejo de perfeição e busca da intimidade divina, fez e faz surgir diversas experiências de peregrinação, desde a fuga para o deserto até à peregrinação a lugares significativos e excecionais, cada um com o seu encanto e a sua rica história. Jerusalém, Roma, Santiago de Compostela e tantos outros santuários e “fortalezas do espírito e da cultura” que enriquecem a história local, nacional e internacional, são “lugares que encarnam a memória de grandes santos” e de Nossa Senhora. Foram e são lugares privilegiados para a cultura do encontro. Do encontro com Deus, com a Sua Palavra, com a Igreja, com a reconciliação, com Jesus Eucaristia, com a caridade, com a humanidade, consigo mesmo, com a natureza, com Maria, a Senhora do Encontro. Este “grande fenómeno que envolve massas populares, animadas por convicções simples e profundas, alimenta a espiritualidade, faz aumentar a fé, estimula a caridade, anima a missão da Igreja”. No entanto, não faltou quem alertasse que “o verdadeiro caminho a empreender é o que conduz o fiel, da realidade física à espiritual, da vida no corpo à vida no Senhor”, e não tanto a caminhada de um lugar para o outro. Martinho Lutero até denunciava que pode acontecer “que alguém faça a peregrinação a Roma e gaste cinquenta e cem florins e até mais, e deixe a esposa e os filhos e talvez um seu próximo em casa, à mercê da miséria”.

 Nos últimos tempos, Paulo VI, João Paulo II, Bento XVI e Francisco foram peregrinos dos grandes santuários internacionais, tornando-se peregrinos do próprio mundo, como que a dar um sinal de um caminhar mais vasto e universal da humanidade ao encontro de si própria. O homem sempre foi e continua a ser “um viandante que tem sede de novos horizontes e fome de paz e de justiça, investigador da verdade, desejoso de amor, aberto ao absoluto e ao infinito”. Ao encaminhar-se para metas positivas de vária ordem e natureza, a humanidade enfrenta novos obstáculos e também muitos dos antigos. Por isso, é normal que ela “experimente também o cansaço e nutra o desejo de um lugar, que possa ser um santuário onde repousar, um espaço de liberdade que torne possível o diálogo consigo mesmo, com os outros e com Deus. A peregrinação do cristão acompanha esta busca da humanidade e oferece-lhe a segurança da meta, a presença do Senhor”.

 Para nós, os crentes, a peregrinação é “uma manifestação cultural a ser realizada com fidelidade à tradição, com sentimento religioso intenso e como atuação da sua existência pascal. A dinâmica própria da peregrinação revela algumas etapas que se tornam um paradigma de toda a vida de fé: “a partida” torna manifesta a sua decisão de avançar até à meta e de conseguir os objetivos espirituais da sua vocação batismal; “o caminho” condu-lo à solidariedade com os irmãos e à preparação necessária para o encontro com o seu Senhor; “a visita ao santuário” convida-o à escuta da palavra de Deus e à celebração sacramental; “o retorno”, por fim, recorda-lhe a sua missão no mundo, como testemunha da salvação e construtor da paz”.

Estando a experimentar um novo impulso, a peregrinação reclama uma pastoral com “uma clara fundamentação teológica que a justifique”, tornando-a “uma profunda e amadurecida experiência de fé”. Sobre a Peregrinação e o Santuário, aconselho a ler os documentos publicados em 1999 pelo Conselho Pontifício para a Pastoral dos Emigrantes e Itinerantes, intitulado “A Peregrinação no Grande Jubileu do Ano 2000 – O Santuário, memória, presença e profecia do Deus vivo”. Foram publicados num pequeno volume pela Ed. Paulinas, em junho de 1999, e foi deles que me servi na elaboração deste texto.

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