Nem sempre o que é idealizado e conseguido é o melhor ou mais útil. Quem procura cavalos de raça para atingir objetivos ambiciosos e encher o ego, pode acabar triste e sofrido, desejando burros que, serena e pacificamente, o ajudem a levar a água ao moinho. Por isso se diz que ‘mais vale asno que me leve que cavalo que me derrube’. Este foi o mote dado a Gil Vicente para que ele se desunhasse a provar que não plagiava os seus trabalhos. Sem ficar amorrinhado, arregaçou as mangas, encheu-se de nove horas e deu à luz, com grande estilo e sem dor, “A Farsa de Inês Pereira”, uma divertida peça de teatro. De mãe galinha, a Inês, ambiciosa e oca com vocação para a folia, para se libertar da sua pasmaceira existencial desejava um marido apalaçado e rico, envernizado, de polidas e altas relações socias, com unhas para tocar viola e a saber cantar. Por isso, recusa Pêro Marques pelo considerar trouxa e tosco, sem desenvoltura social, embora abastado. Seduzida com engenhosas mentiras, casa com Brás da Mata, um fanfarrão a viver de aparências, falido, não envernizado mas doido varrido, fraco traste que lhe deu o golpe do baú e lhe infernizou a vida. Morto quando afoitamente fugia da guerra, Inês abraça e festeja a tão desejada notícia. Viúva alegre e amante da vida airada, volta ao início, casa agora com Pêro Marques, o trouxa, o bobo e tosco, mas com guita para comprar melões. O desenrolar do final da peça, porém, faz lembrar o célebre sapateiro de Braga, na versão que eu ouvi. Este, quando soube que a sua mulher estava a jantar com um amante, correu veloz para o sítio, esbaforido e com força de assustar, faz bater a aldraba da porta só para reivindicar que ‘ou haja moralidade ou comamos todos’, das duas, uma. Pêro Marques, por sua vez, pucarinho de Estremoz nas mãos de Inês, sem suspeitar que estava bem enfeitado, carrega alegremente a mulher e, cantando com ela que assim é que se fazem as coisas, leva Inês às cavalitas até junto do amante, um falso ermitão, seu antigo namorado. Se Gil Vicente passou no teste com elevada distinção, Inês, dado o desaire da sua primeira experiência, bem pôde dizer com substância: “antes quero asno que me leve que cavalo que me derrube”.

Mas vem isto a propósito de quê? Do Dia Mundial da Paz, ora pois! E, já agora, também do Dia da Sagrada Família! Quando a família é tudo menos família, quando cada um puxa para seu lado e procura a melhor maneira de trair, ofender e derrubar o outro, quando se fomenta a cultura da indiferença e apenas se promove o ego de costas voltadas para o verdadeiro sentido e significado da vida, quando se descuida a fidelidade a compromissos assumidos e se dá azo ao deixa correr, avizinha-se o sofrimento e a guerra com a destruição interior de inocentes, que são sobretudo os filhos. E ninguém merece isso, ninguém! E que dizer da Paz entre os povos?!… Não é que nós fomos dotados de sabedoria, inteligência e capacidade para sermos paus para toda a obra e acabamos, mercê de ambições sem medida, sem ética e sem moral, por virar o feitiço contra o feiticeiro? Verdade é que o homem sonha e concretiza, gera e acumula conhecimento, partilha-o, soma extraordinárias conquistas no campo da ciência e da tecnologia, contribui para uma melhor organização da sociedade, para um mais alto aperfeiçoamento do homem e do mundo. Mas…, e aí está o mas…, há de haver sempre o demo de um mas a dar gana de partir pratos por ser desmancha prazeres… Se a ciência e a tecnologia, por ambições sem medida e por falta de critérios e ética, se torna semelhante a cavalo que nos derruba, não valerá a pena preferir o burro que nos deixa viver em paz, harmonia, liberdade e dignidade?… Presumo que o leitor acaba de travar a fundo e de encostar à valeta para zurzir nesta ideia, mas tenha calma, por favor, não se enerve, é só para lhe despertar o interesse pelo Dia Mundial da Paz e o provocar a ler a Mensagem do Papa Francisco para esse dia sobre a ‘Inteligência Artificial e a Paz’, até porque, a paz também depende de cada um de nós, mesmo que não sejamos cientistas nem mestres em robótica e sistemas inteligentes…como eu, aliás, que estou a anos luz de distância!

A investigação da verdade fascina, e essa é a tarefa fundamental da ciência em favor da humanidade. Ela vai satisfazendo as exigências e os caprichos da vida e vencendo a multiplicidade de achaques que lhe espreitam pela janela e lhe batem à porta. Muito mais e melhor o faz quando é inspirada pelo amor, regulada por aquela sabedoria que é património da humanidade e defendida de ingerências indevidas. Se assim for, ela respeitará sempre a dignidade, a liberdade do homem, ajudando-o a viver na esperança de atingir o fim último da paz, todos os direitos humanos. É indiscutível a confiança na comunidade científica mundial, ela gera respeito e admiração, alicerça a esperança. Acreditamos que a autonomia legítima das ciências, quer no campo da investigação pura, quer no campo da investigação aplicada não está em causa. Alegramo-nos quando percebemos que os poderes político, económico e outros, sentem a obrigação de a favorecer e apoiar, sem a deter nem a colocar ao serviço de interesses menos bons. E aqui é que está o busílis!

São João Paulo II afirmava que “o homem de hoje parece estar sempre ameaçado por aquilo mesmo que produz; ou seja, pelo resultado do trabalho das suas mãos e, ainda mais, pelo resultado do trabalho da sua inteligência e das tendências da sua vontade” (RH15). Cada vez mais apreensivo, o homem teme que alguns dos seus produtos, sobretudo “aqueles que encerram uma especial porção da sua genialidade e da sua iniciativa, possam ser voltados de maneira radical contra si mesmo; teme que eles possam tornar-se meios e instrumentos de uma inimaginável autodestruição, perante a qual todos os cataclismas e as catástrofes da história, que nós conhecemos, parecem ficar a perder-se de vista” (id. RH15).

Dizem os sábios, os livros e o senso comum, que, se não existir um planeamento racional e honesto, se o homem deixar de agir como ‘senhor’ e ‘guarda’ inteligente da natureza, mas se tornar um explorador e destruidor sem respeito algum pelo desenvolvimento da vida moral, sem dar prioridade à ética, esquecendo o primado da pessoa sobre as coisas, a solicitude do homem pelo homem e a superioridade do espírito sobre a matéria, temos o caldo entornado e a mesa da vida muito suja. O que deve estar sempre presente é saber “se o homem, enquanto homem, no contexto deste progresso, se torna verdadeiramente melhor, isto é, mais amadurecido espiritualmente, mais consciente da dignidade da sua humanidade, mais responsável, mais aberto para com o outros, em particular para com os mais necessitados e os mais fracos, e mais disponível para proporcionar e prestar ajuda a todos” (RH15). Francisco, aludindo a esse dom que é a inteligência humana e agradecendo tudo quanto ela é capaz de fazer para bem da humanidade, afirma que este vasto leque de possibilidades humanas, se não houver ponderação, podem não ser consideradas um verdadeiro progresso, mas “um risco para a sobrevivência humana e um perigo para a casa comum”. Se a inteligência e o coração do homem se tornarem, eles mesmos, cada vez mais ‘artificiais’, a paz e os direitos humanos serão uma miragem!

Antonino Dias

Portalegre-Castelo Branco, 29-12-2023.

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