Sim, a culpa é do Papa Francisco, não é da Eva nem da cobra nem vai morrer solteira. Ele que me desculpe e o leitor não se escandalize com esta minha ousadia, mas foi ele quem nos escreveu a dizer que “a alegria cristã é acompanhada pelo sentido de humor” (GE,126), coisa que não significa falta de respeito, o respeitinho é muito bonito. E ele até lembra, entre outros, Tomás More, que rezava todos os dias para que Deus lhe desse uma suficiente dose de humor para viver feliz. O bom humor contagia, adoça a vida, humaniza…

Desde que, depois de eleito, passou pela sacristia das lágrimas da Capela Sistina, para rezar sobre o que lhe tinha acontecido e vestir uma das três batinas brancas à espera do tamanho físico de quem quer que fosse eleito; desde que, daí chegou à varanda principal da Basílica de S. Pedro para se apresentar ao mundo e pedir ao povo de Deus que o abençoasse e rezasse por ele; desde aí, tudo tem sido, para Francisco, um ver se te avias. O Espírito Santo e a sua preocupação pela humanidade não o deixam descansar. Pessoalmente, em traje papal, logo foi pagar a conta ao Hotel, onde, nos dias do Conclave, se tinha hospedado, não viessem a dizer que ele era daquela espécie de pessoas cuja denominação o leitor sabe. Para alguns, porém, já isso de ele ir pessoalmente ao Hotel pagar o que devia, naquelas circunstâncias, foi coisa fora da caixa, levantou pó quanto bastasse para que os viperinos de serviço espanejassem tal estilo e logo augurassem futuro sombrio para a ortodoxia romana.

Regressando a casa, imaginamos Francisco, já consciente de que era a Pedra da Igreja escolhida por Cristo, imaginamo-lo a escancarar portas, a abrir janelas, a franquear gavetas, a telefonar aos amigos, a gerar empatia, a criar proximidade com todos como gostava que todos naturalmente o viessem a fazer. Mas, se ainda não falei, é dos tapetes que vou falar, dá-me mais gosto e jeito, embora lhes pareça que não bate a bota com a perdigota, mas bate, bate bate. Com zelo e persistência de santo, jamais Francisco deixou de os sacudir, à janela ou fora da janela, razão pela qual anda por aí muito pó no ar a gerar abadas de morrinha em muito boa gente. As modalidades que ele tem usado para sacudir o pó dos ditos cujos são diversas, como diferentes são as formas de quem cuida dos da própria casa. Ora pega nos tapetes e apenas os sacode; ora usa a vassoura, ou o que for, para os sovar até lhes fazer saltar o pó que teima em permanecer; ora usa tecnologia mais sofisticada ou robôs de aspiração; ora dá a entender que já estão demasiadamente surrados e são como burro velho na aprendizagem, já não vale a pena; ora os olha mais como tropeço enredoso do que como coisa bela e útil; ora entende que já não servem para mais nada senão para serem substituídos, etc. etc. e tal. Mas, não haja dúvida, o pó anda por aí no ar, debaixo dos tapetes é que Francisco o não deixa sossegar. Mas, engraçado!, apesar do peso e dos fortes abanões, o demo dos tapetes nunca lhe caem das mãos. Tem mãos fortes e firmes, não fossem elas as mãos de Pedro, do Papa, e ainda por cima jesuíta. É que há, por esse mundo fora, mais que muitos mirones e espiões, mui mui atentos, a ver se ele os deixa cair, para correrem e os erguerem bem alto como troféu de salvadores heroicos da ortodoxia e de património milenar valiosíssimo e por ele tão desbaratados. Como é saudável e bonito ver, ler, ouvir, refletir e perceber tanto chinfrim que o sacudir dos tapetes tem causado, sabendo nós que é urgente e salutar que aconteça e que o pó vai acabar por pousar normalmente, com Pedro e sob Pedro, refontalizando, convertendo, renovando, salvando, seguindo em frente. Ó feliz culpa de tanto pó e chinfrim! Este pó é como o maná do deserto, que foi um dom tão importante quão intrigante e chinfroso, ainda hoje a captar a imaginação de todos. Uns ficaram felizes e cheios de esperança, outros protestaram, outros amuaram e outros até perderam o apetite, tantas eram as saudades dos pepinos e das panelas do Egito (Ex 16, 14; Nm 11, 4-8). Moisés sofreu, mas permaneceu forte e firme. Francisco também, não desiste!

Para a maioria esmagadora, apesar de ser pó, é um pó saudável, não danifica nada nem ninguém, não entope nem entorpece. Antes pelo contrário, mexe positivamente com as pessoas, beneficia a respiração, torna o mundo espiritual e intelectualmente mais habitável. Para outros, é um pó tóxico, causa-lhes azia, desespera-os, isola-os, parece-lhes que o mundo vai acabar, e torcem, retorcem e voltam a torcer e a retorcer porque, para eles, o descalabro está mesmo iminente, uma grande desgraça se aproxima! Para outros, é assim-assim, tanto lhes dá como se lhes deu, não são carne nem peixe, são uma espécie de esperanto. No entanto, vai-lhes sendo útil, conforme as suas conveniências e circunstâncias. Para outros, é causa de medonha enervação, deixa-os com fortes dúvidas existenciais. Gostavam duns pozinhos mais doces, com receitas fáceis de aplicar, mas entendem que o Papa, só sacode o que sacode e sempre a meias, deixa-lhes tudo no ar e na dúvida. Sacode o pó mas não acrescenta qualquer coisa mais que eles gostariam de ouvir. Assim, só lhes complica a vida, emaranha-a ainda mais porque só fala em discernimento com esse jeito de dizer que a realidade é superior à ideia e que é preciso confiar mais na força da graça e na solicitude pastoral do que na força das leis. Para outros, isolando afirmações e usando critérios preconceituosos, é motivo para ocultarem a sua trave e manifestarem maus fígados, zurzindo no argueiro de quem não gostam, de pessoas e instituições, a quem desprezam e gostariam de ver ao largo e ao longe. Para outros, agora é que vai ser, “todos ao molho e fé em Deus”, “todos, todos, todos”, pois foi o Papa que disse. Será que disse? Sim, disse e repetiu, e até convidou a rapaziada a repetir com ele. E muito bem, foi bonito de se ver, ouvir e sentir, eu também me associei à multidão naquele entusiasmo de repetir com o Papa. No regresso de Lisboa a Roma, porém, no avião, Francisco respondeu à curiosidade de uma jornalista estrangeira que, não sei se afetada com o pó na garganta ou mesmo sem o pó, lhe colocou precisamente essa questão, isto é, como é que ele explicava “esta incoerência entre ‘Igreja aberta’ e ‘Igreja não igual para todos”. Respondeu o Papa: “… a Igreja está aberta para todos e, depois, há legislações que regulam a vida dentro da Igreja e, quem está dentro, atém-se à legislação … Mas isto não significa que a Igreja seja fechada. Cada um encontra Deus pela própria estrada, dentro da Igreja; e a Igreja é mãe, guia cada um pela sua estrada … Venham todos e, depois, cada qual, na oração, em conversa íntima com Deus, no diálogo pastoral com os agentes da pastoral, procura o modo de avançar…”.

A Igreja acolhe toda a gente, sim. Sendo chamada a ser “hospital de campanha para curar as feridas”, como diz Francisco, ela tem de ser mesmo uma espécie de “carro vassoura para não deixar ninguém atrás”, como afirmou Tolentino Mendonça. Mas, com toda a caridade e solicitude pastoral, como se lhe exige e, aliás, é seu dever, ela não pode aceitar tudo como se tudo fosse igual a tudo. Acolhe e acompanha as pessoas, como mãe, com humildade, “passo a passo, no seu caminho de amadurecimento”. Faz suas as alegrias e as esperanças, as dores e as angústias de cada um, e, com Cristo, em Cristo e ao jeito de Cristo, assume “uma atitude sabiamente diferenciada: algumas vezes, é necessário permanecer ao lado e ouvir em silêncio; outras vezes, deve-se preceder para indicar o caminho a percorrer; e outras vezes ainda, é oportuno seguir, apoiar e encorajar” (RF77).

Caro leitor, “Deus não nos deu um espírito de medo, mas um espírito de força, de amor e de sabedoria” (2Tm 1, 7). O ‘amor de Cristo nos impele’ (2Cor 5,14). “Coragem, não tenhais medo”, a barca não vai afundar-se (Mc 6,50), “Eu estarei convosco todos os dias, até ao fim do mundo”, garantiu-nos Cristo Jesus (Mt 28,20).

Antonino Dias

Portalegre-Castelo Branco, 15-09-2023.

 

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