Nos Museus do Vaticano existe a Galeria das Tapeçarias. Como é de prever, também por lá há muitos tapetes, simples e comuns. Foram as nobres tapeçarias e os tapetes mais comuns que deram ao Papa Francisco uma trabalheira dos diabos, hercúlea mesmo! O pobre do Papa, com persistência reiterada e firmeza de mãos, passou o tempo a sacudir à janela o pó de tais espécimes, sentindo necessidade de espadelar ou zurzir em alguns como se de centeio verde se tratasse. É que o pó entranhado pelo tempo afora, lá e em qualquer lugar do mundo, espeta bem os pés no chão, fica quedo e teimoso, custa-lhe a sair e nem sempre sai de todo. Seja como for, Francisco fez andar por aí muito pó no ar e provocou que muitos outros fizessem o mesmo. Há quem esteja cauteloso na avaliação, à espera que o pó assente para ver se, de facto, tudo decorreu dentro da ortodoxia espanejadora e nada de importante foi mandado às malvas. Pelo que nos vai chegando, suas Eminências vão fazendo essas conversações no Espírito. A maioria das pessoas, porém, acha esse pó das sacudidelas de Francisco muito saudável, fortalece-lhes a musculatura respiratória e a oxigenação do sangue, dá-lhes até vontade de estrondear o grito – não o de Edvard Munch, silencioso e aterrador, não o de Tarzan, desumano, sujeito à lei da selva -, mas o grito do Ipiranga, o que liberta e promove. A par, outros há cujos ácaros lhes estão a fazer rabiar o toutiço, levando-os a fazer trinta por uma linha. Provocam-lhes espirros a fio, coceira e pingo no nariz, tosse seca, dificuldade em respirar, vermelhão nos olhos, entorse nas ideias e teias de aranha no coração. Sobretudo a quem frequenta ambientes muito fechados, sem arejamento e mui rendados, húmidos e bafientos sem a claridade da Luz. Os alergologistas maceram os seus miolos na tentativa de acertar com os corticoides apropriados e a posologia capaz, mesmo quando não há fatores genéticos a complicar a cura.

Por causa dessa azáfama papal, logo após a morte de Francisco atropelavam-se os comentários de uns e de outros, de mais outros e outros e d’outros ainda, e bem. Era um ver se te avias a querer ‘primeirar’ e pontificar. Embora importante, acentuava-se sobretudo a dimensão horizontal da sua ação, esquecendo a dimensão vertical, o fundamento do seu cargo e da sua ação, uma ação de suprema e urgente importância para toda a humanidade mas que se insiste em ignorar. É certo que não se pode pregar a estômagos vazios e que há dimensões de exigência imediata, tendo alguém de ser megafone a ampliar a voz de quem não tem voz ou não é respeitado nos seus mais elementares direitos. Honra seja ao Papa Francisco por isso, começou por aí, por esses valores evangélicos. No entanto, o grande alcance da sua ação está no facto de ele ter sido um verdadeiro apaixonado pela pessoa de Jesus Cristo e pelo seu projeto em favor da humanidade. Se Francisco é o sucessor de Pedro, ele é, sobretudo, o Vigário de Cristo, e Cristo, o maior revolucionário de todos os tempos, tanto da história pessoal como da história humana, mandou-nos ir por todo o mundo a fazer como ele fez. Sendo a plenitude da revelação de Deus Pai, Jesus partilhou a sua vida com a dos pobres, desde o presépio à cruz. Identificou-se com os humildes, os frágeis, os perseguidos, os migrantes, a gente das periferias geográficas e existenciais. Por causa disso, muitos aqueceram os fusíveis e mostraram vísceras de maus fígados. Logo perseguiram, humilharam e descartaram Jesus no alto da cruz. Francisco tinha a consciência bem viva da sua função. Partiu, por isso, para a casa do Pai, de consciência tranquila. Sem esquecer ou banalizar o cerne da sua missão, viveu a tempo o seu próprio tempo, como Vigário de Cristo e sucessor de Pedro, como “princípio perpétuo e visível, e fundamento da unidade que liga, entre si, tanto os bispos como a multidão dos fiéis”. Cidadão de um mundo tão conturbado em que lhe tocou viver e agir, nunca teve medo de atuar dentro do seu campo de ação e influência. O fogo do Espírito ardia-lhe no coração a levar o Evangelho a toda a parte. Fiel a Deus e ao homem, fiel ao Evangelho e à Igreja, perito em humanidade, não foi menos interessado e comprometido com a história dos povos. Sem fechar nenhum, sempre foi um homem da alegria e da esperança a rasgar caminhos novos para um futuro diferente, mais humano, mais justo. A todos e para todos, conforme as circunstâncias e os destinatários, tinha uma palavra de estímulo e de afeto. Conseguia tocar as pessoas de forma imediata e intuitiva. Umas vezes como que sentado junto delas, a ouvi-las e a confortá-las com paciência de Job. Outras vezes indo à frente a indicar o caminho, desviando-as de becos escuros e sem saída. Outras vezes indo ao lado, a fazer companhia e de mãos dadas, para ajudar na íngreme encosta da vida. Outras vezes atrás, como que a empurrar e a animar os tristes e desalentados.

Não se cansava de fazer fortes apelos à mudança de rumo, sobretudo quando falava da necessidade da conversão da mente e do coração, da necessidade da paz que nasce no coração de cada um, da terceira guerra mundial aos pedaços, da economia que exclui e mata, dos populismos autorreferenciais, do mundanismo que banaliza e destrói, do Alzheimer espiritual que esquece as próprias raízes, as lições da história e a própria missão no mundo. Defendia o respeito pela vida desde a conceção à morte natural, os direitos e a dignidade das pessoas, a cultura do encontro, a revolução da ternura, o ecumenismo, o diálogo inter-religioso, o cuidado com a Criação, a nossa casa comum da qual não podemos ser predadores. Denunciava a esquizofrenia existencial, a globalização da indiferença, a idolatria do dinheiro, a desertificação espiritual, a cultura do provisório, a colonização ideológica, a psicologia do túmulo dos paralisados como múmias.

Sempre construiu pontes e rasgou caminhos de esperança e de renovação, para se ir mais além pelas sendas da tolerância, da fraternidade universal, da solidariedade humana, da ecologia integral. Com afeição, fazia-se próximo dos jovens, das famílias feridas, das pessoas frágeis e sofridas. Manifestamente humilde e dialogante, não tinha receio de gerar polémica, mesmo dentro da Igreja, esperando que ela fosse uma espécie de ‘hospital de campanha’. A sua empatia evangélica tinha aquela força capaz de se fazer ouvir e de encetar caminhos novos, orientando para Cristo, para a cultura da verdade e da coerência. Foi uma voz diferente, muita vezes contundente, nem sempre meiga no contexto de um mundo a descarrilar do amor aos outros. Com a sua palavra, com as suas atitudes e gestos, com os seus escritos e viagens apostólicas, sempre testemunhava e apelava à construção de um mundo melhor, mais humano e intelectualmente mais habitável. Se viveu a tempo o seu próprio tempo a alicerçar o futuro, muitos daqueles que o continuam a aplaudir e a puxar à frente, não têm, nunca tiveram nem terão a coragem de o seguir. A ambição, a surdez e a dureza do coração de tantos são bem mais fortes que o seu interesse pelo bem comum ou pelo amor aos outros. Francisco conquistou o coração do mundo, falava como quem tem autoridade, não foi uma cana agitada pelo vento, não desceu da cruz para agradar a gregos ou a troianos. O mundo, se ficou mais pobre pela sua partida, ficou muito mais rico pelo seu testemunho de homem fiel a Deus e aos homens.

Antonino Dias

Portalegre-Castelo Branco, 02-05-2025.

 

 

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