A grandeza é a única medida das coisas grandes, diz-se. Celebrar os grandes acontecimentos da História, mesmo da história local, sempre mereceu digna preparação. O entusiasmo de os recordar, viver e dar a conhecer às novas gerações dá gás e força à celebração. No entanto, por mais que a História tussa, se vire do avesso e se esprema a dizer que sim, jamais acontecimento algum se pode comparar ao nascimento de Jesus. Ele é o princípio e o fim de tudo, o Senhor do Universo e da História, o Alfa e Ómega, Aquele que é, que era e que há de vir (cf. Ap 1,8). A sua pessoa, a sua mensagem, o seu projeto, a sua metodologia, passados mais de dois mil anos, continuam a fascinar. São atuais e atuantes, mesmo que, ao longo dos tempos, se tenham cometido erros sem conta em seu nome, por excesso de zelo de uns, por deszelo de outros, por braços caídos de muitos e por não menos olhos meramente esticados para o céu. A sua Palavra não é uma ideologia nem uma moda, é Ele, Hoje. Uma Palavra verdadeiramente revolucionária, viva e eficaz. Um instrumento de transformação pessoal, familiar e social se escutada com os ouvidos do coração, se interiorizada e traduzida em atitudes de vida. Queira-se acreditar ou não, ela constitui o grande fundamento filosófico e teológico da boa convivência, da ação social que liberta e da doutrina universal dos Direitos Humanos. Pese embora que a dureza do coração humano, os preconceitos, as distrações, os erros e desalinhos, só os deixassem proclamar em meados do século passado. E ainda assim continuam a lonjuras de serem plenamente vividos, mesmo por aqueles que os sintetizaram e suam as estopinhas a reclamar dos outros a sua observância. A dignidade essencial de cada ser humano nasce do ensinamento cristão de que todos os homens são filhos de Deus, criados à sua imagem e semelhança. Todos, sem exceção nem aceção de pessoas, todos irmãos, iguais em dignidade, em direitos e deveres. Todos iguais, mas todos diferentes e cada um com os seus dons e talentos ao serviço uns dos outros, ao seu jeito.

A vinda do Filho de Deus ao nosso encontro foi, de facto, o acontecimento mais notável e influenciador da História. Tão grandioso que o próprio Deus o foi preparando ao longo de muitos séculos, falando aos homens ‘muitas vezes e de muitos modos’, como quem fala a amigos (cf. DV2-4), por ritos e sacrifícios, por figuras e simbolismos da primeira Aliança, tudo a convergir para Cristo (cf. CIgC522). Historicamente, já veio, fez-se homem. A sua vinda e o nosso encontro pessoal com Ele são parte integrante e essencial do mistério de Cristo e da vida cristã. Em cada tempo, em cada lugar, Ele faz-se encontrado em cada irmão e nos dons do seu Espírito. No fim dos tempos virá para que Deus seja tudo em todos.

No encontro com a humanidade, Deus dá tudo de si. Vem e faz-se sentir presente. As suas palavras, os seus gestos, os seus modos inquietam e fazem pressentir ao homem que existe uma outra vida, um outro modo de ser, uma diferente forma de estar e agir. E, embora demorando a habituar-se a Deus e ao convívio transformador com Ele, o homem compreende que Deus veio, vem e virá. É a experiência de uma história sempre inacabada, atraída pela sua plenitude e nunca apenas empurrada pelo seu início. O fim da história não é o seu termo, cinzento e tenebroso, é a sua finalidade, luminosa e vivificante. É o encontro com o Senhor. E, como alguém dizia, se não podemos voltar atrás e fazer novos começos, sempre podemos rever o caminho e redefinir novos fins.

O Advento, com o qual liturgicamente sempre preparamos o Natal, é o tempo certo para, com exigência pessoal, familiar e eclesial, preparar o encontro com o Senhor. Entre o que somos e o encontro com Jesus, há caminho a fazer, conversão a encetar, dom a acolher, vida a reformular, prioridades a estabelecer. E se o Advento, mesmo etimologicamente falando, significa vinda ou chegada, ele é também, e necessariamente, o tempo do regresso, o tempo da expectativa, o tempo do desejo, o tempo da esperança, o tempo do inacabado e incompleto. O Senhor virá.

Entre o direito e o avesso do mundo, da vida e da história no tempo atual, a esperança pode parecer uma quimera. As crises da vida e da história são, não raro, também crises de esperança. Mas a esperança não é um paliativo contra a realidade. É o húmus a partir do qual se vive toda a realidade.

Será que a guerra, os conflitos locais e globais, os escândalos, a fome, o desemprego, a pobreza, a opressão, a degradação da qualidade de vida, a injustiça e a desigualdade, o crime, o abuso da casa comum e a erosão climática, a degradação das instituições, a inflação, a agressividade latente, o oportunismo … será que tudo isso mata e dispensa a esperança? Com certeza que não. Obrigam-nos mas é a purificar as representações que dela fazemos já que, cristãmente, é impossível uma esperança isenta, superficial e ligeira, como refere Tolentino Mendonça na sua obra ‘Metamorfose necessária’.

A esperança é a grande virtude dos tempos de crise. Se, por um lado, é esperar e aguardar, por outro também é desejar, ansiar, perseverar, suportar e, por isso, fazer acontecer. É urgência, é compromisso, é dom. É hoje! É o hoje que é preciso resolver. Ontem, possivelmente, amámos. Amanhã, quem sabe, amaremos. Mas só o hoje se conjuga harmoniosa e realisticamente com o amor. A esperança não poderia ser uma abstração imaginária que possibilitasse uma fuga ao confronto com a realidade. Pelo contrário, ela “exercita-se na tribulação, aprofunda-se na paciência, alarga-se na capacidade de resistir ao mal e ao sem sentido”. É a esperança que nos dá a capacidade de dialogar com o futuro, diz o autor citado.

Ceder à tentação de viver o advento apenas sob a forma de uma naïf regressão a um tempo e modo sem mistério da encarnação de Cristo não ajudaria a viver na esperança.  Encerrar-nos-ia em Belém, sem consequências. Pelo contrário, o nosso futuro caracteriza-se pela novidade que o regresso do Senhor pode instaurar. Por isso, o nosso presente ganha novo sentido e orientação. Sim, existe uma salvação que nos é trazida e comunicada por Cristo e que se experimenta na remissão dos pecados, mas cuja plenitude ainda não experimentámos.

O Natal bem preparado e vivido leva-nos a renovar, a confessar e a afirmar a nossa fé, com mais alegria e esperança, dizendo que o Senhor Jesus ‘por nós, homens, e para nossa salvação desceu dos céus, encarnou no seio da Virgem Maria, fez-se homem, foi crucificado, padeceu e foi sepultado, ressuscitou e subiu aos céus, de novo há de vir em sua glória, para julgar os vivos e os mortos, o seu reino não terá fim’ (cf. Símbolo dos Apóstolos).

O lema da Jornada Mundial da Juventude diz-nos que “Maria se levantou e partiu apressadamente” (Lc 1, 39). É o convite a procurarmos Deus no nosso futuro e a procurarmos o nosso futuro em Deus como impacientes sentinelas na esperança. Só a esperança nos fará amar o que Deus revelar. O Advento é tempo de esperança. Sem ela não haverá Natal.

 

Antonino Dias

Portalegre-Castelo Branco, 25-11-2022.

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