Não é por mal que algumas coisas se dizem, sei. E de vez em quando isso acontece, quer porque não se foi muito feliz na maneira de abordar a questão, quer porque os termos ou a linguagem usada não foi a melhor, quer porque se quer agradar a algum auditório, quer porque a pessoa que fala está um pouco em jejum no assunto em causa. Muitas vezes, porém, é o suficiente para desclassificar e impressionar menos bem.

 Na última situação destas a que assisti, a caridade não me pareceu bem abordada, nem a mim nem a outros que primaram pela presença. Mas a forma como ali foi trazida à baila tem sido bastante recorrente, apesar de acontecer em lugares onde ela deveria marcar a diferença, sendo promovida e atuada na ação em prol de serviços cada vez mais humanos e humanizadores e da boa convivência entre responsáveis, colaboradores, utentes e voluntários. De facto, por vezes, puxa-se pela palavra caridade para depreciar ou minimizar o seu significado e conteúdo. Declara-se a sua insignificância para realçar a solidariedade, como se aquela fosse inimiga desta, como se esta fosse muito mais importante sem aquela, ou como se alguém não pudesse falar da solidariedade sem zurzir na caridade, isto é, sem faltar à caridade para com a caridade!

 Aplaudimos a solidariedade familiar e de vizinhança. Aplaudimos a solidariedade económica, política, social, ecológica, cultural e a que mais quisermos juntar como meio necessário para a construção do bem comum. É um valor e uma necessidade urgente e sempre inacabada. Em cada tempo, o bem comum vai exigindo novas formas de solidariedade, é uma exigência da justiça. Mais: não é só uma exigência da justiça, também é uma exigência da caridade. Quando “o empenho pelo bem comum é animado pela caridade, tem uma valência superior à do empenho simplesmente secular e político” (Caritas in Veritate,7).

Porque se desconhece a natureza, o valor e a sua estreita ligação com a verdade e a justiça, a caridade, sempre iluminada pela luz da razão e da fé, continua a ser rodeada de preconceitos, esvaziada de sentido. No entanto, como por vezes se deixa transparecer, ela não é uma espécie de humanismo piegas, não é sentimentalismo estéril, não é filantropia para a promoção do ego, não se identifica com aquele bem-fazer que brota de sentimentos de pena ou dó ou de interesses subjacentes de quem quer que o reconheçam e lhe batam palmas, não é um meio ao serviço de proselitismos ou para manter situações existenciais injustas, não está dependente de partidos e ideologias, deve sentir-se escrita e avivada no coração de cada um seja quem for. A caridade reclama a verdade, exige e supera a justiça, “não se move apenas por relações feitas de direitos e deveres, mas antes e sobretudo por relações de gratuidade, misericórdia e perdão” (id.6).

 A própria Assembleia-Geral das Nações Unidas, em 2012, pela Resolução 67/105, proclamou o Dia Internacional da Caridade a celebrar no dia 5 de setembro de cada ano. O objetivo deste Dia é, entre outros e segundo os seus promotores, reconhecer o papel da caridade no alívio às crises humanitárias e ao sofrimento humano em todo o mundo, homenagear o extraordinário trabalho de inúmeras organizações e indivíduos, fomentar e promover o diálogo, a solidariedade, o entendimento mútuo e os valores universais. Como expressão de “solidariedade global”, a caridade sente o carinho e o encorajamento de todos os Estados-membros, organizações regionais e internacionais e os vários atores da sociedade civil, nomeadamente através da educação e de atividades que contribuam para a sensibilização da sociedade para este “enorme potencial de amor que vence o mal com o bem e abre à reciprocidade das consciências e das liberdades” (id.9).
Quando ela está ausente da vida pública e familiar, quando, por exemplo, a caridade falta em qualquer instituição ou estrutura social, mesmo que haja abundância de tudo e uma logística digna de se lhe tirar o chapéu, a solidariedade pode ser um corpo sem alma. Pode haver gente a usufruir da solidariedade de muita gente, em abundância de muitas coisas e boas condições, mas a sentir-se indesejada, não amada, abandonada, a morrer de fome de atenção, de caridade. Se assim for, mesmo que as instalações e os serviços prestados sejam de luxo, de cinco estrelas para cima, tudo não passará de mero assistencialismo, não liberta, não promove, não satisfaz, não gera família. Como sabemos, mesmo as Obras de Misericórdia não são apenas corporais, também são espirituais. E, não raro, estas são muito mais importantes que aquelas. O critério de ação, para nós cristãos, foi-nos dado por Cristo que nos mandou amar uns aos outros como Ele nos amou: atenta e dedicadamente, sem fingimento, gratuitamente, incondicionalmente, sem fazer aceção de pessoas, dando a vida, por Caridade… Como lembra Bento XVI na Encíclica Deus Caritas est, a consciência de que, em Jesus, o próprio Deus Se entregou por nós até à morte, deve levar-nos a viver para Ele, e com Ele para os outros (cf.DCe33).

Relembremos o texto de São Paulo: “Ainda que eu falasse línguas, as dos homens e dos anjos, se eu não tivesse caridade, seria como um bronze que soa ou como um símbolo que tine. Ainda que eu tivesse o dom da profecia, o conhecimento de todos os mistérios e de toda a ciência, ainda que tivesse toda a fé, a ponto de transportar montanhas, se não tivesse a caridade, eu nada seria. Ainda que eu distribuísse todos os meus bens aos famintos, ainda que entregasse o meu corpo às chamas, se não tivesse a caridade, isso nada me adiantaria. A caridade é paciente, a caridade é prestativa; não é invejosa, não se ostenta, não se incha de orgulho. Nada faz de inconveniente, não procura o seu próprio interesse, não se irrita, não guarda rancor. Não se alegra com a injustiça, mas regozija-se com a verdade. Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. A caridade jamais passará (…) Agora, portanto, permanecem estas três coisas: a fé, a esperança e a caridade. A maior delas, porém, é a caridade” (1Cor 13, 1-8.13).

 

Antonino Dias

Portalegre-Castelo Branco, 01-11-2019.

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