HOMILÍA NA FESTA DA SENHORA DA AGONIA

CIDADE DE VIANA DO CASTELO

20-08-2021

 

 

Louvada seja na terra

A Virgem Santa Maria

 

Quer nas horas de tristeza,

Quer nas horas de alegria;

Quer sobre as ondas do mar

Lá com a morte à porfia;

Quer nos escuros caminhos

Pelas noites de invernia;

Quer no lume da lareira,

Quer no sol quando alumia;

Quer no amor de toda a hora,

Quer no pão de cada dia…

 

Louvada seja na terra

A Virgem Santa Maria[1].

 

(Saudação às autoridades presentes)

Grandes ou pequenos, ricos ou humildes, no alto dos montes ou no meio das planícies, nas cidades ou nas aldeias, os santuários como tais reconhecidos, ou as igrejas e capelinhas amadas pelo povo,  “fazem parte da “geografia da fé” e da piedade do Povo de Deus”[2]. Aí se alimentam ricas tradições pessoais, familiares, paroquiais e diocesanas. Aí, e assim, se animam e sociabilizam as comunidades, se faz perceber no mais íntimo do coração “a nostalgia e o fascínio da santidade”. E tantas vezes vemos isso acontecer por entre uma confusão babélica e difícil de separar, muito menos de corrigir. Ali coexistem os foguetes, as armações e os sinais de festa, o cumprimento da promessa, a Santa Missa, a Procissão, as voltas à capela, o abraço ao santo ou o toque na imagem, a esmola no prato, as bandas musicais, os conjuntos e outras expressões culturais como cortejos etnográficos e históricos, a passagem pelo bailarico, o barulho ensurdecedor das tendas a fazerem valer o seu produto, o cheiro a grelhados, as farturas, os carroceis e toda a oferta de diversão e doutras coisas mais arreigadas nos costumes locais e a entrarem pela capela adentro. E tudo preparado e organizado com muito amor e esforço, na presunção de que, quem vem à festa do santo, da santa ou da Virgem, quem vem com fé e devoção, também quer e gosta que tudo o resto seja bonito de se ver, ouvir e nele participar. É Festa! E festa é festa!

Pois, também nós, hoje, apesar das circunstâncias pandêmicas que nos atormentam e exigem cuidados, também nós viemos à Festa. E aqui estamos neste Santuário, comungando da alegria do peregrino de Israel, que cantava: “Que alegria quando me disseram: “vamos para a casa do senhor!”[3]. O santuário é o ícone da “morada de Deus entre nós”, remete para o “mistério do Templo” que se cumpre no corpo de Cristo, na comunidade eclesial, em cada um de nós os fiéis[4].

Mas este vir até aqui, porém, como ensina o Concílio Vaticano II, não pode ter, não tem com certeza, nada a ver com a curiosidade, com a vã credulidade, com o milagrismo, com o sentimentalismo superficial e o formalismo das práticas externas. Tem a ver, sim, com o reconhecimento da dignidade singular de Maria, à qual nos dirigimos com confiança e amor filial e a quem procuramos imitar no seguimento de Jesus[5].

Olhar para ela, é ver uma vida centrada em Cristo, mas sem favoritismos. Ela não foi milagrosamente poupada às dificuldades, aos sofrimentos, às tentações, nem sequer à morte. Percorreu o caminho da fé, às vezes obscuro e cansativo. Isto é, ela viveu a nossa mesma vida, com as alegrias que a mesma oferece e as dores que implica. Passou momentos dramáticos, vivenciou incompreensões, exílio, angústias, temores, dúvidas. Não viu tudo de forma clara e nítida, não entendeu tudo; muito do que entendeu, não o entendeu imediatamente; pediu explicações ao anjo, admirou-se, por vezes, daquilo que se dizia de seu Filho; nem sempre entendeu as escolhas que Ele fazia e como as concretizava; não teve, desde o início, a revelação do que iria acontecer a ela e ao Seu Filho….viveu, como todos nós, com as certezas da fé, não com as certezas da evidência[6]. E quando tudo parecia contradizer a sua fé, ela continua forte e firme a acreditar no Senhor. Aceita a sua cruz junto da cruz de Seu Filho, oferece e associa as suas dores e lágrimas de mãe, às dores de Jesus pela redenção da humanidade.

Assim, torna-se, para todos nós, modelo e proposta, não mero refúgio. Ela não é uma espécie de mãe protetora e possessiva que bloqueia os filhos no infantilismo ou lhes fomenta a cultura do egoísmo. É, sim, uma mãe que nos faz crescer para a maturidade e nos leva a enfrentar o risco e a cruz da vida, aceitando-a, não como um fracasso, mas como experiência na própria carne da cruz de Cristo, com valor redentor.

O Evangelho que ouvimos tornou-nos presente a comovedora cena do Calvário. Aos pés da cruz está Maria, a  Mulher, a Mãe. Está de pé, vestida com toda a dignidade e grandeza. Ali está, firme, humilde, corajosa e solidária. A hora é tremendamente difícil para Jesus, não é mais fácil para Maria. Neste grandioso e trágico acontecimento (ou pontifical) do Calvário, Maria, aos pés da cruz, no mais profundo silêncio de si mesma, em sofrimento de Mãe, renova amorosamente o seu “fiat”, porventura o mais difícil da sua vida. “Fiat”! Faça-se!

Faça-se n’Ele e em mim a vontade de Deus. Isto é, cumpra-se em Jesus, Meu Filho, a vontade do Pai. E faça-se em mim segundo a Sua Palavra: que eu entenda, que eu aceite, que eu sofra com Ele, que eu me ofereça com Jesus ao Pai pela salvação dos homens…

Maria reconhece e acolhe na imolação de Jesus, Seu Filho, o desígnio do Pai em favor da Redenção do mundo… e ali está ela, ao lado d’Ele, na realização histórica do plano da salvação traçado pelo Pai que a escolheu e quis contar com a sua colaboração para levar até ao fim o mistério da incarnação redentora.

No “fiat” de Maria “ressoa o grande não de Deus a todas as torres de babel do mundo e o grande sim da sua graça, que destrona os poderosos e exalta os humildes”[7]. É o “sim” que nos deve desafiar e estimular. Por isso, aqui estamos, não para celebrar a festa da dor sem sentido, mas para celebrar a festa que dá sentido à dor. Não para celebrar as dores de Nossa Senhora da Agonia, mas para celebrar o amor de Maria pelo seu Filho e por cada um de nós, amor que tanto sofrimento lhe trouxe. Aqui estamos para louvar e agradecer, para rezar por nós e por todos os seus devotos, por todos quantos têm hoje aqui o seu pensamento ou aqui vieram e aqui estão, de perto ou de longe, com devoção e confiança. Sim, esta imagem da Senhora da Agonia tem sido, ao longo dos tempos, testemunha da oração de tantos e tantos, da voz suplicante dos humildes de coração. Uns terão vindo com o júbilo agradecido de quem alcançou benefícios, graça e misericórdia, deixando ecoar dentro de si o seu testemunho de amor e de proteção. Outros, amargurados pelas doenças corporais que os afligem, terão vindo pedir a saúde ou a capacidade de enfrentar a doença, fazendo dela um caminho de santificação. Outros ainda, amargurados no espírito pelo pecado ou adormecidos na fé pelo apego às coisas efémeras e inúteis, aqui terão vindo pedir-lhe força e graça para se converterem e caminharem com alegria e paz, em vidas renovadas no meio das tempestades da vida. Aqui também terão ecoado, com certeza, muitos gritos silenciosos de pessoas em busca de luz e solução para as  suas famílias feridas ou já desfeitas, ou que vivem sem amor, sem trabalho, sem pão, sem alegria, sem paz, ou têm de enfrentar trabalhos imprevisíveis, quer na migração, quer no mar quer em terra. Hoje e aqui, recolocamos no coração da Senhora todos os seus pedidos e ação de graças, bem como rezamos pelas autoridades civis e religiosas, por todos quantos contribuem, na diversidade dos setores de atividade humana, para o desenvolvimento, a segurança e o bem-estar do povo. Rezamos por todos quantos procuram a força, a iluminação e o estímulo para viverem com dignidade, saúde e alegria, assumindo novos rumos, novas filosofias de vida, novas maneiras de ser, estar e participar na construção dum mundo melhor e mais feliz, fundamentado no amor, na justiça e na paz.

Ouvimos também no Evangelho, que, junto da cruz, Maria aceita o desafio de ser mãe de cada um de nós, representados que estávamos na pessoa do discípulo que Jesus amava.  Jesus, agonizante, dá à Senhora da Agonia e sua Mãe, João, como seu filho, e, a João, Maria, como sua mãe.

Concretizando um pouco mais, convido-te a que te sintas tu próprio esse discípulo que Jesus ama. Confiando plenamente em ti, Jesus, quais últimas palavras em momento da sua agonia, entrega-te a última e única riqueza que ainda Lhe resta: a Mãe, e diz-te: “Filho, eis aí a tua mãe”.

Acreditamos que também tu a receberás com prontidão e alegria em tua casa, sentindo-te amado por Jesus através do dom de Sua Mãe e da confiança que em ti depôs. No entanto, que lugar lhe dás em tua casa? Onde está ela? Fechada, esquecida, descartada, sentindo que tu a abandonaste porque vives indiferente para com ela? Que atenção lhe dás, o que lhe agradeces e pedes, o que lhe rezas, como vives e convives com o seu Filho Jesus já que ela nos disse para fazer tudo quanto Ele nos disser?

Seja qual for a tua postura, ela não te abandona, ela permanece junto de ti, discretamente, como Mãe, fazendo força para que aceites a cruz da tua vida, que a ofereças com Cristo ao Pai pela salvação do mundo, que te faças cireneu de todos aqueles que, infelizmente, são imagem do rosto de Cristo que morre na cruz. Como sabes, mercê de egoísmos instalados que se querem fazer passar por valores, progresso e direitos, não falta gente a levantar cruzes para destruir os irmãos. Há multidões de pessoas amordaçadas e sem esperança, há muita gente para quem a primavera deste milénio ainda não trouxe o sol, nem andorinhas, nem flores, nem qualquer espécie de prosperidade. No entanto, aceitar e receber Maria como Mãe e Jesus como companheiro de viagem, implica não perder a esperança, implica não permitir que o pó da vida nos afaste de viver com alegria e confiança. Por isso, a tua presença aqui, nesta casa da Senhora, não te deveria permitir vir de mãos livres ou a pensar que tudo estará bem no âmbito da tua fé.

A propósito: o que trouxeste para oferecer hoje à Senhora? O que lhe vais oferecer? Pensa lá, em silêncio!… Qual é o teu presente?… Uma orquídea, uma gerbera, um jacinto, uma estrelícia … Repara: a Comissão de Festas da Romaria de Nossa Senhora da Agonia anunciou que, na Alameda da Senhora da Agonia, os moradores que todos os anos realizam os tapetes de sal nas cinco ruas desta Ribeira de Viana do Castelo, este ano resolveram homenagear a mulher da Ribeira a cuja homenagem também nos associamos com muito gosto e igual reconhecimento. Para isso, criam um tapete com uma área de 100 metros quadrados, utilizando duas toneladas de sal. Homero definiu o sal como "divino". Platão afirmou que era uma "substância cara aos deuses". O Antigo Testamento lembra que, aquando da destruição de Sodoma e Gomorra, a mulher de Lot, em fuga, olhou pra trás e ficou transformada em estátua de sal. A nossa palavra salário, vem daí e está documentada desde o século VII antes de Cristo. O trabalho era pago com sal, hoje um produto muito comum, mas raro e necessário noutros tempos. Para além doutros efeitos, o sal, se não perder as suas qualidades, dá sabor e conserva os alimentos. Ora, Cristo disse-nos: ‘vós sois o sal da terra’. Se um cristão deve ser o sal da terra, também não pode perder aquilo que o identifica, isto é, as boas obras que lhe dão sabor à vida, temperam e conservam a fé.

Por isso, vou dar-te algumas ideias para presenteares a Senhora. Talvez que o presente que Ela mais apreciará seja a oferta generosa de ti mesmo. Talvez o propósito de maior coerência de vida, de alegria e testemunho onde quer que vivas, trabalhes ou estejas. Talvez a tua honesta e dedicada colaboração na construção da polis, isto é, duma sociedade mais humana porque mais justa e intelectualmente habitável. Talvez uma prática de fé mais assídua, interessada e participativa, inserida na tua comunidade cristã que deves ajudar a crescer. Talvez na fidelidade ao ditado que diz “família que reza unida permanece unida” assumires o que Ela pediu: rezem o terço todos os dias. Talvez consagrares-te ao seu Imaculado Coração como também Ela pediu. Talvez prestares mais atenção à tua formação cristã e à dos teus filhos. Talvez prestares mais atenção à tua esposa ou ao teu marido e àqueles que vivem a teu lado… Ah! e a propósito, costumas rezar pela santificação do teu marido ou da tua esposa, pela santificação dos teus filhos e dos teus pais e avós?!…  Se entrares dentro do teu próprio espaço interior, não terás grande dificuldade em encontrar a melhor prenda para ofereceres à Senhora da Agonia, numa linha de conversão e de fidelidade a Cristo. Não esqueças: o cristianismo não somos nós que o inventamos, não é uma opinião de quem quer que seja, não consiste em palavras vãs, não podemos adaptá-lo à nossa, porventura, desleixada forma de viver.

Maria, qual estrela a orientar os pescadores no alto mar, indica-nos o caminho, a verdade e a vida. E São Bernardo de Claraval, que faz hoje precisamente 868 anos que faleceu (1153) assim nos exorta: “Ó tu, quem quer que sejas, que te sentes longe da terra firme arrastado pelas ondas deste mundo por entre borrascas e tempestades: se não queres naufragar, não tires os olhos da luz dessa estrela! Se o vento das tentações se levanta; se o escolho das tribulações se interpõe no teu caminho, olha para a estrela: invoca Maria! Se és agitado pelas ondas do orgulho, da ambição, da maledicência, da inveja, olha para a estrela: invoca Maria! Se a cólera, a avareza, os desejos impuros sacodem a frágil embarcação da tua alma, levanta os olhos para Maria! Se, perturbado pela lembrança da enormidade dos teus crimes, confuso perante as vilanias da tua consciência, aterrorizado pelo medo do juízo, se te deixas arrastar pelo turbilhão da tristeza ou precipitar no abismo do desespero, pensa em Maria! Nos perigos, nas angústias, nas dúvidas, pensa em Maria, invoca Maria! Que o seu nome nunca se afaste dos teus lábios, jamais abandone o teu coração. E, para alcançares o amparo da sua intercessão, não negligencies os exemplos da sua vida. Ao segui-la, não te desviarás; rezando-lhe, não desesperarás; pensando nela, evitarás o erro. Se ela te sustenta, não cairás; se ela te protege, nada terás a temer; se ela te conduz, não te cansarás; se ela te é favorável, alcançarás a meta”[8] .

Caros amigos e amigas devotos da Senhora da Agonia, agradecendo o amável convite do Senhor Administrador Diocesano e do Reverendo Pároco desta Paróquia onde repousam os restos mortais de São Bartolomeu dos Mártires, desejo a todos vós muita saúde e uma festa feliz em dinamismos de conversão e santidade. E termino como comecei:

Louvada seja na terra

A Virgem Santa Maria

 

Quer nas horas de tristeza,

Quer nas horas de alegria;

Quer sobre as ondas do mar

Lá com a morte à porfia;

Quer nos escuros caminhos

Pelas noites de invernia;

Quer no lume da lareira,

Quer no sol quando alumia;

Quer no amor de toda a hora,

Quer no pão de cada dia…

 

Louvada seja na terra

A Virgem Santa Maria.                                                           

 

Antonino Dias

 


[1] Hino do Ofício das Horas, no Comum de Nossa Senhora

[2] Diretório sobre a Piedade Popular e a Liturgia, princípios e orientações, 2001, 264; e Carta Encíclica Redemptoris Mater, 27.

[3] Salmo 122,1.

[4] cf. id. Diretório…,262.

[5] cf. Lumen Gentium 67.

[6] cf. Fernando Armellini, O Banquete da Palavra, Festas, Ed. Paulinas, 127.

[7] Bruno Forte, Breve introdução à Fé, Ed. Paulistas, 1993, 55.

[8] Ofício das Horas, 12 de setembro, IV Volume, pág. 1280.

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